RALOUÍN - A longa ária das águas

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Era noite e escuro, muito embora a mata não fosse tão cerrada e alguma luz alcançasse o chão. Afonso andava descalço e descamisado, apoiado no ombro de sua mãe, Maria Isabel, mulher baixa e de aparência exausta. Embora a mulher pisasse passos duros, firmes, Afonso parecia hesitar a cada novo gesto. Sabiam onde iam e apenas se detiveram quando ouviram piados de corujas que pareciam responder umas às outras em algum diálogo tenebroso.

Maria levantou os braços e parou. Afonso ergueu os seus, como pode, embora não tivesse muito fôlego. Foi quando doze sentinelas se aproximaram.

Em algum lugar nos arredores do Rio Tietê havia uma tribo Kainguang e era pra lá que fugiam alguns escravos quando precisavam ser curados de algum abuso. Os índios, assim como seus antepassados no velho continente, entendiam a terra, as plantas e os ventos e perto deles era como se de algum modo pudessem se aproximar daquilo que realmente eram. Diante dos sentinelas da mata, Maria deu um soluço e desatou a chorar. Os índios os escoltaram mata a dentro num zigue-zague interminável.

Quase uma hora depois, Afonso estava deitado numa esteira ao lado de uma fogueira dentro de uma cabana. Um índio muito velho falava feliz como quem vive uma vida sem problemas, numa fala cantada, e soprava a fumaça do seu cachimbo nas marcas de chicotada nas costas do jovem escravo. Falava como se cantasse numa feliz madrugada, olhava para ela no fundo dos olhos e sorria.

- Toda dor é coisa do mundo de lá que vem pra avisar a gente alguma coisa. – disse uma índia que parecia ser filha do curandeiro. O velho disse algo a mais e a moça continuou – que sorte a do seu menino ser o que traz a marca e não aquele que a causou. Tupã nos assiste sempre, minha filha.

Maria engoliu o choro e balançou a cabeça como se concordasse. Uma mariposa do tamanho de um morcego entrou na cabana e sobrevoou o rapaz. O velho parou. Falou algo olhando para a mariposa, e a índia tocou no braço de Maria.

- Procuram vosmecês.

Aquele foi o momento da mais terrível agonia, pois se pedisse abrigo, sabia que não negariam. Índios jamais se negam a ajudar. Mas uma tragédia se abateria sobre eles. Tinha que voltar. Ela e Afonso seriam duramente punidos.

Seu filho, que já não estava bem....

“Não vou pensar nisso”, disse a si.

O velho entupiu os ouvidos de Afonso com uma goma feita com ervas e mandioca e esticou o braço. A mariposa posou em seu pulso e caminhou até quase o ombro dele. Moveu as asas delicadamente e voou. Ele se aproximou de Maria e acariciou o rosto dela, encarando-a nos olhos, rindo. Disse algo.

- Ofereça o vosso sangue para o rio quando ele vier outra vez. Se não conseguir, entregue pra terra. Mas tenta o rio. – disse a moça à Maria Isabel.

O velho derramou água no rosto de Afonso, que engasgou e se levantou. Partiram com tanto medo quanto tinham quando chegaram. A verdade era simples: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Há o medo da punição por ter fugido, independente de retornar e “se entregar”, e a pena de ser encontrada como fugitiva. Ela tremia, os pés tropeçavam, a respiração falhava.

Deveria voltar pelo mesmo caminho, foi o que os Kainguang lhe disseram. Bem, ela voltou. Podia ouvir as vozes dos capatazes, podia ouvir a voz de José , um velho bandeirante que, como qualquer pirata, cometia atrocidades em troca de ouro, um punhado de terras ou simplesmente o prazer do exercício da maldade e Tibério, escravo como ela, com quem ela própria tivera que se deitar, anos antes, para procriar para que o dono vendesse alguns escravos de vez em quando, e que lhe servia hoje como capitão do mato. Escondeu-se atrás de uma árvore.

Ouvia-os. Eles pareciam raivosos. Insultavam-na como negra fujona, como se ela fosse uma criminosa, mas não, não sentiam raiva. Era um dia de trabalho e insultar era parte do ofício. Tinham que capturar um negro e o negro de hoje era ela. Ela saiu de trás das arvores e voltou até eles, quando José lhe apontou uma espingarda. Tibério agarrou-a pelos braços e lhe deu um tapa no rosto sem soltá-la. Ela não gritou. Ficou olhando-o nos olhos.

- Cadê o negrinho?

- Eu levei o nosso filho pros índios curarem das chibatadas que você deu nele. Não estamos fugindo.

- Faz parte da lição não ser curado. – disse o bandeirante com a fala solta, mansa, em uma boca de poucos dentes. – Pra aprender o lugar. Ele vai ter que apanhar de novo.

O velho foi andando, seguia a direção em que ela veio. Encontrou Afonso sonolento. Abaixou-se para pegar uma vara de qualquer graveto e agrediu-o no peito.

- Esses preto gosta de ir pros índio. São selvagem que nem. – murmurou José. E acertou o rapaz com um soco no rosto, ele gritou.

- São. – disse Tibério encarando a mulher nos olhos. – Tem que saber o seu lugar se quiser viver. É assim que é.

Maria cuspiu na cara de Tibério, que a apertou os dedos nos braços dela. Ela sabia que algo horrível iria acontecer. Seu coração estava batendo na garganta, mal podia respirar. Tibério ergueu a outra mão para dar um outro tapa no rosto. Foi então que ouviu aquele som. Um canto. Um som constante. Uma única nota, aguda, num primeiro momento, um som triste, mas que prolongado parecia tenebroso. Vinha da direção do rio. A mão erguida de Tibério despencou ao lado do corpo e a mão que a apertava se afrouxou. Seus olhos viraram-se nas órbitas e ficaram brancos.

Tibério e José se viraram em direção ao rio e começaram a andar. Uma marcha lenta, calma, uma marcha fúnebre. Ela os seguiu sem entender. A imensa mariposa voou pela cabeça dela e sumiu no mato. Já na margem do rio ela viu um fogo-fátuo se dissolver. Com a distração do fogo-fátuo, não percebeu de imediato, mas havia uma mulher no meio do rio.
Ajoelhada como em genuflexão em dois jacarés enormes, com cabelos grossos e armados feito os pelos de uma capivara. A pele dela brilhava como se vestisse uma armadura de escamas prateadas. A mariposa posou em seu rosto e abriu as asas formando uma máscara viva, sinistra, que movia-se da maneira mais perturbadora envoltada pelos cabelos armados.

Enquanto ela cantava sua longa nota de melodia triste, duas onças surgiram do mato atraídas por sua voz. Olharam na direção da mulher do rio, olharam para os homens e os atacaram na barriga, rasgando-os. Começaram a comer.

A mulher parou de cantar e num instante os homens despertaram e começaram a agonizar enquanto banqueteavam as onças na mais angustiante morte que pudessem imaginar.
Maria olhou para a mulher das águas, que começava a se levantar, ficando em pé sobre os jacarés e parecia assistir com indiferença a morte dos homens. Ela, quem ou o que quer que fosse, levou a mão direita até o rosto e a mariposa subiu na sua mão. Seu rosto parecia uma estátua de algum metal escuro, embora seus olhos brilhassem dourados e quando ela olhou para Maria Isabel, a luz da lua se refletiu neles fazendo-os acender como dois imensos faróis.

A escrava abaixou a cabeça em posição de reverência e assim permaneceu por instantes, tentando entender o que testemunhava. Ainda com o rosto para baixo, deixou a margem do rio sem jamais dar as costas à senhôra do rio, como seus antepassados lhe haviam ensinado um dia.

Maria voltou com seu filho para a fazenda e descobriu que, para sua sorte, apenas os escravos e os capatazes sabiam de sua aventura noturna. Os restos mortais de José e Tibério foram encontrados dias depois. Tão logo pode, derramou para a natureza o sangue de seu ventre para agradecer a proteção da Senhôra do Rio.


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