GOLGOTA, Programa Vocacional e Paralisia Cerebral

by - 20:59:00


Por Mayhara Ribeiro. Na foto, eu corrigindo a postura do ator
João Paulo Lima no palco do Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso
Escrevo este texto em primeira pessoa por narrar um processo pessoal a partir de uma motivação que remonta os primeiros contatos que tive com teatro enquanto alguém que possui o desejo de contribuir com o legado de todos que me precederam. É importante que nos próximos parágrafos eu explique meus paradigmas pessoais enquanto artista, para que o culminar da realização de GOLGOTA, que é um advento em meio a essa jornada, possa ser compreendido da maneira correta.

A primeira recordação que tenho de ir ao teatro foi com numa excursão durante o ensino básico para assistir “Truks”, de Eva Furnari, e me lembro de como me causou encantamento ver os atores vestindo preto manipulando bonecos e como vê-los não comprometeu, de forma alguma, minha fantasia: na verdade foi o contrário!

Vê-los fez meu cérebro conceber que há uma relação objetiva entre o real e o fantástico que é justamente o que aciona os motores da nossa imaginação.

Porém, as experiências posteriores a Truks se resumiam a comédias com estrutura e argumentações bastante frágeis que abalaram muito minha capacidade de apreciar o teatro e seus artistas. Evidentemente, o tempo me ensinou a apreciar e reconhecer o valor também destas comédias. Mas o fato é que eu não me visualizava fazendo parte daquelas propostas.

Foi então que 2008, enquanto trabalhava no SESC Santana, fui convidado pelo, até então desconhecido por mim, Geraldo Mário (ou Geraldinho, como é conhecido), que insistiu para que eu assistisse à peça “A Pedra do Reino”, que adaptava o livro homônimo de Ariano Suassuna e era dirigida por um tal de Antunes Filho (que eu até pensava ser o próprio Geraldinho).

Naquela altura da vida, bem ou mal, eu já me reconhecia como um escritor (escrevia havia mais de 10 anos), mas com meus preconceitos com o teatro, sequer era capaz de me imaginar fazendo parte daquilo. Pois o fato é que assistir aquela peça, A Pedra do Reino, me deixou em choque, pois pela primeira vez em toda minha vida assisti a uma peça de teatro sentindo um desejo absurdo de ter podido estar naquele palco contando aquela história, daquele jeito, ao lado daqueles atores. E minha vida nunca mais foi a mesma.

Pulando algumas etapas da vida pra ganharmos tempo, quase 10 anos depois, em 2017 lá estava eu no sétimo andar do SESC Consolação, diante de Antunes Filho, que eu agora não só sabia bem quem era, como estava absolutamente atento a tudo o que podia ouvir dele. E neste processo, eu me espantei em perceber que eu sempre estive certo em minha intuição: não existem regras exceto o objetivo central do artista que é ser solidário, sobretudo consigo mesmo.
Em exercício com Daniela Fernandes durante o Curso de Introdução ao Método do Ator, no CPT, 05/2017.
Abaixo, da esquerda para a direita: Antunes Filho e Emerson Danesi.
Por ser solidário, me refiro ao desejo de entender os próprios segredos a fim de descobrir os condicionamentos, sejam eles físicos, gestuais e emocionais (principalmente estes) para, a partir deles, construir o que quer que seja.

E aí entram as pesquisas, onde há métodos de diversos grandes estudiosos, como Stanislavsky, Eugênio Kusnet, Yoshi Oida, Lee Strasberg, e o próprio Antunes Filho, mas também podemos somar a isso noções de filosofia, mitologia e até fisioterapia (e astrofísica, medicina, sociologia, gastronomia e o que mais der na telha). E aqui chegamos a GOLGOTA.

Em exercício, "Blues", João Paulo, Mayhara Ribeiro, Rose Ribeiro e Renata de Oliveira improvisam relações aleatórias
e com isto, identificamos os cacoetes, as dificuldades em imporem-se ou submeterem-se através da improvisação.
Desde o término do Curso de Introdução ao Método do Ator, no CPT, tive muita dificuldade em encontrar parceiros que estivessem dispostos a abrirem o coração e a mente para investigarem a si mesmos neste mergulho vertical. É, de fato, vertiginoso, e exige humildade. Ouvi diversas vezes “já fiz muitos cursos, muitos exercícios”, relacionando a ideia de fazer algum exercício como algo para principiantes.

Entendo, e sempre vi desta forma, que na verdade tem mesmo é a ver com descobrir-se para refinar a si mesmo. E aí percebo que faz todo sentido que Antunes Filho evite atores consagrados e invista, primordialmente em artistas mais jovens. O famoso tem agenda, custo e prazos, e o artista de mais idade tem paradigmas e condicionamentos emocionais difíceis demais de se quebrar. 

Comecei a escrever GOLGOTA em 4 de julho de 2018, meu aniversário. Uma tragédia épica com referências de western inspirado pela angústia coletiva que, ideologias à parte, percebi ganhar forma nos últimos anos.

Foi quando me reuni com alguns amigos que, sem grandes oportunidades de trabalho, nem “menções honrosas” em seus currículos, se mostravam dispostos a embarcar num processo como este. Pessoas sem pressa para alcançar o melhor resultado e dispostas (na medida do possível) a olhar para dentro de si mesmas. 

De início, convidei Renata de Oliveira, Ariane Roveri, Tatiana Santos, Rose Ribeiro e João Paulo Lima, amigo de longa data, que conheci enquanto estudava dramaturgia com Paulinho Rocco (Cia Dom Caixote) no extinto Studio Beto Silveira, hoje Carpintaria do Ator. João é um jovem de 25 anos que, por conta de uma Paralisia Cerebral Espasmódica, aprendeu a andar somente aos 7 anos, e que surgiu como um desafio para tudo o que eu achava que conhecia sobre atuação, pesquisa de gesto e sua relação com as emoções. 

Identificar os condicionamentos físicos e psicológicos nos permite compreender o que é a paralisia e
encontrar maneiras de fazer com que ela passe a ser uma "ferramenta a mais" a disposição do artista, ao
invés de uma limitação. Isolá-la para só então podermos enaltecê-la.
“João, quero descobrir o que é condicionamento, e o que é paralisia”. Propus o desafio e ele aceitou. Aceitou sem entender bem onde estava se metendo (pra minha sorte), pois se ele fizesse ideia do quanto mudaria nestes poucos meses de processo, talvez e assustasse. Pois embora todos os outros atores tenham trazido seus dilemas, sinto que no processo dele essa busca se torna mais evidente.

Por condicionamento, me refiro a vícios posturais que se relacionam diretamente com nossas emoções e as circunstancialidades da vida de cada um. Um exemplo são os pescoços projetados para a frente, comuns em nosso tempo pelo uso excessivo de smartphones, assim como ombros que se inclinam em direção à mesa por estarmos diante de um computador e que, ao levantarmos, permanecemos com a mesma postura.

Particularmente estes exemplos, pescoço e ombros, foram questões que em meu processo com Antunes Filho foram percebidos em mim por ele, mas tive uma grande dificuldade de perceber internamente e ainda hoje, mais de um ano e meio depois, tenho dificuldades em controlar, embora tenha melhorado muito desde então.

Tendo dito isto, é evidente que a partir desta lógica uma pessoa com paralisia cerebral, ou outras deficiências quaisquer, poderia reservar alguns condicionamentos mais fáceis de se perceber, porém, muito, muito mais difíceis de se neutralizar.

Renata de Oliveira em processo de pesquisa para GOLGOTA. "Grande Hotel",
exercício que provoca e estimula o ator a visualizar 
diferentes situações e
descobrir em cada vírgula uma nova oportunidade.
Já no primeiro dia em que dispusemos do anfiteatro do CCJ – Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, na ocasião com Renata de Oliveira, atriz e cantora que até aquele momento faria o papel de Hermínia na peça, durante exercício, ele comenta algo como “nunca estive nessa posição em toda a minha vida”.

A posição em questão era estar com as pernas abertas e arquear o tronco como quem passa por debaixo de uma cerca. Foi uma mistura de “puxa, que coisa bonita” com “que absurdo, temos mesmo muito o que fazer!”, e ter a disposição a estrutura do CCJ sem dúvidas fez toda a diferença.

Para a própria Renata, na ocasião, foi interessante interagir com as descobertas de João Paulo, pois lhe permitiu perceber que os exercícios, de fato, vão muito além de “aquecimento” ou “entrosamento”, e a estimulou a levar a sério sua própria pesquisa. Atualmente Renata se desligou do processo por sua carreira como produtora musical estar deslanchando com a produção da rapper Bia Doxum, sua irmã.

Filmei os atores ao longo do processo e isso foi muito importante. Não tenho os olhos tão treinados, como Antunes Filho, precisava de alguns dias digerindo e observando para conseguir descobrir o que havia de errado, qual era o condicionamento. E nisso, percebo meu próprio crescimento, pois passo a descobrir as dificuldades que posso eventualmente ter em explicar para uma pessoa seu próprio corpo.

Percebi observando já na primeira gravação que João Paulo, que aprendeu a andar já no final da infância com a ajuda de andadores, parecia buscar o apoio de barras invisíveis inclinando o corpo para a frente. Paralelo ao peso de seu tronco inclinado para a frente, equilibrava-se jogando o quadril para trás, a fim de distribuir pesos e mantinha a cabeça sempre baixa, consequência de toda uma vida temendo a eventuais obstáculos que pudesse haver em seu caminho.

Perceber estes condicionamentos não significa que eu soubesse explica-los ao ator, então a partir daí é que surge a parte mais interessante de todo o processo. Não saber explicar significa que me falta entender melhor.  

Só que todos esses condicionamentos refletem também no emocional de cada indivíduo. Foi interessante, por exemplo, em um exercício em que Rose Ribeiro e Renata de Oliveira imitavam o caminhar uma da outra elas perceberem sutilezas como o fato de Rose parecer ter uma postura ereta apesar de seu tórax (e somente ele, e não o tronco) estar inclinado para baixo, e isto nos permitiu reflexões interessantes sobre a personalidade da atriz.

No caso do João, quando conseguimos compreender o que disse anteriormente, ele imediatamente passou a andar com a cabeça erguida, buscando ao máximo distribuir estes pesos que se apoiavam num andador invisível de forma cada vez mais internalizada. Ao neutralizarmos isto, conforme o possível, surgem outros condicionamentos: falta massa muscular. De repente, ele passa a, pouco a pouco, ganhar músculos por todo o corpo.

Rose, assim como João, possuía (ainda com alguma resistência), dificuldade de, por exemplo, concluir sentenças de forma absoluta. Num exercício como “silabação”, nos foi permitido perceber a dificuldade em se impor, e, ao perceber isto, tudo começa a mudar dentro da cabeça destas pessoas.

João Paulo percebeu que as dificuldades em se adaptar ao mundo inacessível sendo uma pessoa com deficiência o fez buscar aprender a ver a tudo de um modo excessivamente positivo, como uma forma de se proteger de sofrimentos e, com isto, barreiras aparentemente inquebráveis tornavam inacessível a ele argumentar com firmeza, como é característico de Judá, seu personagem em GOLGOTA, e isto inevitavelmente o fez perceber-se como um novo homem. 

Já após os primeiros encontros, por apropriar-se mais de sua postura, começa a ser visto com outros olhos pela própria família e amigos. É um homem que anda com a cabeça erguida, e isto reconfigura toda uma maneira de entender a si mesmo.

E tudo isto também acontece com Renata Pillonato, no papel de Frida ou Mayhara Ribeiro, que entrou no início do processo com a saída de Ariane Roveri e assumiu o papel de Belladonna na peça: Mayhara tinha uma visão pura acerca de moralidades sociais e este processo a permite enxergar com empatia e solidariedade a si mesma, percebendo quando falha em seus próprios objetivos.

E isto tudo entra aonde na montagem de uma peça?

Bem, como pode um artista falar em primeira pessoa de uma vida que não é a sua, sendo que o artista em questão tem vivido a própria experiência de existência em terceira pessoa? 

Percebemos que precisamos nos conhecer íntima e meticulosamente para abraçar com generosidade nossa própria essência, daí a escolha da palavra no início de minha reflexão sobre este processo ser “solidariedade”. Qualquer suposta empatia com características de alguém há de ser falsa enquanto eu não for capaz de ser solidário com todas as minhas mais banais ou mais obscuras características.

É fascinante pensar em como, de fato, coração e mente abertos são a técnica mais importante para qualquer artista. Quando reflito sobre minha passagem pelo Centro de Pesquisa Teatral, me lembro de ser chamado de Pescoção, Cabecinha, Cabeção pelo mítico Antunes Filho, de ouvi-lo dizer que meus ombros estavam tensos, mesmo que eu acreditasse piamente que estivessem relaxados.

Na época, certo dia pedi a uma professora, que na ocasião o servia também como assistente em suas aulas, que me explicasse, enquanto eu andasse na frente do espelho, do que o Antunes tanto reclamava. Ela perguntou “Você sente que tá relaxado?” eu digo “Sim”, “Então pronto, tem coisa que é dele, da cabeça dele”. 
Sendo dirigido por Antunes Filho durante o CPTzinho 2017
Por quase cinco meses vi cabeças balançando positivamente enquanto o ouviam falar algo que parecia ser compreendido como se falado em fonemol (língua imaginária usada no processo do CPT), e hoje percebo que foi uma grande sorte minha considerar que, por mais abstrato que pudesse parecer, ele talvez soubesse o que estava dizendo, pois boa parte do que ouvi ali, só posso realmente compreender hoje.

E ter participado do Programa Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo foi fundamental para a consolidação deste processo pois, em meio a dificuldades, indisponibilidade desta ou daquela pessoa no elenco, substituições... Esta relação com o Programa Vocacional nos manteve ligados a uma responsabilidade oficial e hoje finalmente ultrapassamos a barreira do risco de não irmos até o fim. Descobrimos tanto sobre nós mesmos que o clímax, a realização do espetáculo, é agora uma inevitável consequência da jornada e não mais nosso único grande propósito.


Acima, João andando no dia 8 de Setembro, início do processo no palco do CCJ Ruth Cardoso, abaixo no
Centro Cultural São Paulo, em 20 de novembro, véspera da apresentação de conclusão do Programa Vocacional.


Alex Pedro – Dramaturgo e diretor no Grupo Panteão

São Paulo, 10 de novembro de 2018


OBS: O texto acima foi escrito para como um relatório para a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, mas também, e primordialmente, como um registro pessoal do processo da peça.

Sigam "GRUPO PANTEÃO" nas redes sociais.
Instagram
Facebook
Youtube

Se gostou, peça mais um copo, e continue lendo que tem mais:

0 Comentários

Tecnologia do Blogger.