GOLGOTA

PRÓLOGO

Ninguém sabe como a guerra começou;
Se foi com a queda de um prédio com gente rica dentro, ou algum cheio de pobre;
Se foi com o linchamento da mulher pobre chamada de bruxa, ou a travesti que seria um demônio;
Ninguém sabe como a guerra começou;
Se foi com uma briga de trânsito que virou uma revolta e iniciou um incêndio que ardeu em todos;
Se após a grande explosão na beira do mar,
Ou quando derrubaram a última árvore e pingou a última gota do sangue daquele que seria o último dos seus.
Ou se quando choveu pela última vez;
Ninguém sabe como tudo começou,
Mas isto já não importa mais.





CAPÍTULO 1


Havia uma linda cidade, muito próspera, onde as pessoas... 

Houve.

Houve uma linda cidade. Próspera. Onde vidas corriam feito afluentes, riachos e córregos que se cruzavam naquele imenso rio de pessoas que iam e vinham de compromissos, sonhos e responsabilidades. Lá as vezes era apenas segunda-feira, e as pessoas não sabiam que isso era bom.

Hoje, era silêncio. Um interminável e perturbador silêncio. Perturbador. Uma neblina que nunca dissipava, uma névoa seca do pó e das cinzas daquilo que um dia foi vivo e belo. Pelas ruas havia rastros de tanques, partes de pessoas que se perderam pelo caminho, e os fantasmas daquilo que morreu. A gente, os costumes, as maneiras... Estas eram as ruínas de algum bombardeio e este é o lugar em que esta história começa.

Nossa história se inicia pontualmente as duas horas e dois minutos da madrugada de uma terça-feira muito fria.

Ele caminhava pelas sombras das ruinas. Corria entre uma sombra e outra, desviando da luz da lua. Buscava qualquer coisa que pudesse alimentar sua prole. Tudo parecia igualmente seco, igualmente sem vida. Era difícil viver ali, pois a escassez era uma ameaça real. Mas ele sabia onde buscar alimento, e viajou quase quatro quilômetros até chegar a uma casa que cruzara o caminho da guerra mais recentemente. Ali dentro encontrou um discreto banquete aonde pôde confiscar um pouco de comida para seus filhos.

Ele ouviu um barulho e se escondeu embaixo de um corpo humano que já começava a perder a umidade. Ele era uma barata.

Discretamente, entre sombras, chegou uma mulher. Ela cobriu parte do rosto. “Arre, esse monte de corpo de olho aberto”, pensou ela ao observar a família que fora interrompida em seu jantar por um desabamento. Desviou dos corpos e seguiu em direção a cozinha, sem perceber a barata que passara próxima a seu pé direito.

Entrou no que parecia ser uma cozinha e tentou virar móveis ao contrário em busca de qualquer coisa que parecesse comestível e em estado razoável. Ouviu um estalo alto, tomou um susto. Pisara com força em uma barata.

            - Ai, minha virgem santa! – esbravejou ela, irritada, exausta e triste. Recuperou a concentração e retomou a busca. Encontrou o que pareciam pacotes de bolachas e biscoitos e os enfiou em sua mochila com algum sinal de contentamento. Sentou numa cadeira e olhou para o batente que separava os ambientes, onde podia ver a perna de uma pessoa soterrada. Sentiu-se pesarosa. Desejar sobreviver lhe ensinou a passar direto ao cruzar com uma violência e a fazer de conta que não se importava. Porque pensar a respeito doída.

Era uma mulher de meia idade, vestia-se de maneira um pouco masculina e apesar de ter nascido em um tempo em que já havia guerra, a guerra era algo que acontecia “lá longe”, e com “aquelas pessoas”. O erro comum que se comete ao pensar que “eles” existem.

            “Estou cansada”, pensou alto. “Estou cansada de estar cansada, mas até cansar de cansar cansa”. Tocou no coração. Lhe parecia não conseguir mais escutá-lo, nem mais aos seus pensamentos, como a quem ouve o dia inteiro um barulho estridente e continua a escutá-lo até quando cessa. Mas algo lhe chamou atenção. Um barulho vindo de alguma casa ao lado.

            Prendeu a respiração, apesar do coração acelerado, e tirou da saia uma enorme faca de chef de cozinha, meio enferrujada e voltou-se para as sombras. Quem quer que fosse parecia tê-la percebido e se escondeu também.

            - Oi! – exclamou ela, num tom agressivo e forçando a voz grave. – Boa noite!

            Timidamente entrou uma mulherzinha na cozinha, baixa e um pouco gorda. Parecia vestida de maneira um pouco infantil exceto pela capa de lona azul claro   que parecia um manto. Trazia uma bolsa larga pendurada nas costas e um saco de juta que segurava quase como quem segura um bebê.

            - Acho que já é bom dia, dona. – disse a estranha, desconfiada, mas tentando parecer simpática. – Hermínia.

            - Frida. – respondeu a mulher com a faca. – Tá indo ou tá vindo?

            - To vindo e to indo...

            - E não é que é...

            - É.

            - É. – Frida encarou Hermínia um pouco mais e se aproximou - Tá procurando água também? – inquiriu ela, observando que a mulher parecia alguém inofensivo.

            - Ah, mas olha só: tô nada.

            - Todo mundo está procurando água.

            - Todo mundo menos eu. – Hermínia riu, insegura. Era como se tentasse quebrar o gelo, mas parecia haver um risco real de algo dar bem errado ali. Ficou séria. – Aliás, todo mundo menos eu tanta coisa nessa vida de meu Deus.

            Frida guardou a faca, e encarou Hermínia com certo desdém.

            - Comida?

            - Ah, comida todo mundo tá sempre procurando, dona Frida. Na verdade eu tô voltando pra casa. É que eu não lembro bem o caminho. – disse ela, frustrada

            - Quando deixou a sua casa?

- Não sei dizer. Talvez uns 50 anos. Era menina.

            Frida retoma a inspeção pela cozinha – Eu era moça quando saí de casa. Saberia como retornar... – diz, recolhendo um pacote de aveia com uva passa – mas... Jamais! Bem. Eu preciso de água.

            - Água eu sei onde conseguir. – diz Hermínia, tirando uma garrafa de plástico de um litro de sua bolsa e mostrando a Frida o recipiente com uma água amarelada. Frida olha para a água de Hermínia com nojo por alguns instantes e toma a garrafa da mão da mulher e bebe quase metade.

            - Onde tem mais, Hermínia?

           - Achei lá – e apontou em direção oeste – pra lá dali. Se quiser eu te mostro.

            - Eu quero.

            Em tempos assim, as pessoas começam a se perceber como gatos sem raça. Isolam-se, vagam solitárias em busca de riscos, confronto, comida, olhar para a lua em silêncio. Frida e Hermínia saíram devagar e andavam quase sem fazer barulho pelas ruas da cidade. Uma não confiava na outra, mas Hermínia parecia ter algo de que Frida precisasse e, se estivesse armando uma emboscada, Frida certamente a faria se arrepender disto. Hermínia, por sua vez, não gostava de andar sozinha. De algum modo excêntrico, ela parecia gostar de simplesmente andar e conhecer pessoas, passados e buscas diferentes, e parecia ter medo, na verdade, é alcançar seu destino.


Não tão longe dali caminhava o homem. O exausto, o decepcionado, o coxo. Ele estava para trás. Ela estava adiante. Ele oferecera o braço para sua companheira, que se apoiasse nele, mas era ele quem se pendurava nela para aguentar andar depressa. Ela, por sua vez, estava grávida e já tinha que aguentar a barriga que pesava quase tanto quanto os problemas que trazia na cabeça e no coração.

Ela lhe ofereceu o ombro para que ele se apoiasse e ele recusou por não precisar. Na verdade ela só queria que ele percebesse que ela sabia que ele se escorava nela e seria mais fácil trazer uma bengala, mas o orgulho o fazia rejeitar a ideia. As vezes ela estava suficientemente bem para não se importar com isso. Mas havia momentos em que ela simplesmente precisava estar só, e ele ser um peso, físico, literal, era tudo o que ela menos desejaria.

E lá adiante a moça caminhava. Com as vestes brancas sujas com manchas escuras de sangue, manchas comuns a vestes de vivos e mortos que se encontravam por ali. Lenta, ela andava, com os olhos inquietos como se procurassem por algo que aquela alma desejasse possuir, mas que jamais saberia reconhecer se encontrasse.

“Não para, ‘Donna, não desista”, pensou. Apoiou as mãos nos joelhos e arqueou as costas como se tentasse relaxar suas vértebras.

- Só um milagre te faz sobreviver de si mesma, e esse milagre precisa de você de pé. – disse olhando para o chão sem necessariamente enxergá-lo.

“Mais hoje, só mais hoje”, pensou. “Não me importa o amanhã enquanto não vier o sono separar um dia do outro”. Viu mais adiante um muro que havia explodido de dentro para fora e ali se sentou. Ela olhou também para suas mãos. Para os dedos. Eram feios, ásperos. Eram mãos ásperas e com calos sobre os calos.

- Aaaaaaai – suspirou ela erguendo a cabeça num uivo soprado. – Esse livro escrito com ferro quente em couro de costa de pobre. Que letra é essa que ninguém consegue ler?

“Belladonnna”, gritou o homem, ainda um pouco distante. Ela olhou para ele vindo aos passos mancos. Ele era bom para ela. Ela lhe tinha afeição, mas não amor. Amor talvez tivesse, mas não tinha com o que comparar para saber o que era isso. Sentia vontade de agredi-lo. Sentia vontade de se aproveitar de sua característica física. Mas silenciava essa voz quando se lembrava de que ele era ele e não os outros homens. Era difícil não ver o mesmo homem em todos os outros. Sentia vontade de chorar, mas aprendeu a chorar em silêncio e o tempo fez seu choro silenciar até as lágrimas e havia agora uma represa prestes a explodir, e ela temia pelo dia em que isto acontecesse.

“Belladonna”, murmurou ele, cansado, e tentando esconder a irritação com um ar de didatismo.

- Me deixe, Judá.

- Jamais!

Ela olhou nos olhos dele. Buscava alguma razão para odiá-lo. Mas ele realmente se importava com ela.

- Escuta que estamos com o mundo do jeito que o mundo está. – disse ele, num ar de quem ensaiara o discurso enquanto andava. – Olha pra essa barriga e lembra que liberdade e independência são duas deusas caídas. O barro que ergue as paredes do mundo foi empapado com o sangue delas num pau-a-pique feito com os ossos de nossos antepassados.

Belladonna tocou sua barriga como se tentasse, de algum modo inconsciente, não deixar que o bebê escutasse a conversa.

- Não quero mais perde-la de vista. – disse ele. – E não quero dizer isso outra vez. Está cansada? Estou mais que você!

- Como sabe?

- Sei porque sei. Porque tenho experiência. Porque sou mais velho. Porque sou homem.

Silêncio. Ela não gostou de ouvir isso. Judá não se arrepende de dizer isto, mas não desejava tornar tudo ainda mais tenso. Passa por sua cabeça tocar no ombro de Belladonna, mas ele evita. Por que não se preparou ao longo da vida para essas coisas com mulheres?

- Não vi quando tudo começou... – murmurou ele, melancólico, - mas vi quando chegou à porta de minha casa feito o sopro de um lobo maldito que ansiava por comer-nos.

Ela lhe tocou o rosto.

- Meu valente Judá. Precisa de água quente e repouso. Não de minha companhia. É um herói e precisa de uma causa para não enlouquecer. Eu sou uma mulher, – e olhou para o céu sem de fato dar atenção às estrelas – para não enlouquecer, só preciso ficar um pouco sozinha.

“Desculpe, Belladonna”, murmurou ele. No fundo ele a entendia. Mas o mundo era difícil demais para uma mulher e não podia deixa-la desamparada.

- São tempos difíceis. Mas vai passar. Logo teremos paz.

Ela continuou olhando para o céu. Olhava aquele astro que mais brilhava, depois da Lua. Uma estrela solitária de cor clara cuja luz não parecia tremeluzir.

- Eu já vi tempos de paz... Já vivi neles. São só aquele tempo em que outros passam por algo que nunca achamos que chegará à nossa porta, que quem perdeu mais tem pra planejar uma vingança... Ou terminar de apodrecer.

“E é aqui que você vai nascer”, pensou, tocando na própria barriga, num gesto pouco motivado.

- Eu vou sentar do seu lado – disse ele calmamente – e ficarei em silêncio.

Sem olhar para ele, Belladonna acenou com a cabeça, respirou profundamente, e continuou a olhar para o céu.

- Pronto? Vamos seguir que aqui não é seguro. – disse ele levantando após dois ou três minutos.

- Você anda mancando. É lento. Porque não segue na frente? – disse ela de maneira cruel.

Ele olhou para ela incrédulo. “Desculpe”, pensou ela. Ou disse. Não sabe se disse ou apenas pensou. Ela se levantou com certa dificuldade. Ele ofereceu apoio. Ela aceitou, mas ele acabou caindo em cima dela e depois no chão. Ela cai sentada na pedra. Olha para ele, no chão, sentindo um pouco de pena, o que o deixava ainda mais irritado. Ouvem um barulho vindo da esquina. Belladonna se levanta e estende as mãos para ajudá-lo a se levantar, mas ele não aceita. Surgem Frida e Hermínia, que se surpreendem com o casal isolado.

- Homessa! – bradou Frida, puxando a faca.

- Tão procurando alguma coisa? – grita ele.

- Esse homem te fez alguma coisa? – vocifera Frida.

- Tá procurando o quê? – ele tira uma faca da cintura e a aponta em direção à Frida.

- Acalme-se, Judá... – Belladonna o segura pelo braço.

- Acalme-se, Judá! – debocha Frida.

“Tâmo indo buscar água”, Hermínia se aproxima do casal, como quem tenta ignorar a tensão.

- Hermínia, fique quieta.

- Senhora... – Hermínia pareceu curiosa e se aproximou de Belladonna. Olhou para Frida e voltou a olhar a jovem – A senhora tá gravida?

- A senhora tá... – Frida olhou para a moça e se confundiu em suas emoções.

Hermínia gesticula como quem pede para tocar na barriga. Belladonna acena, como quem dá permição. Hermínia sorri tímida e toca na barriga. Judá levanta a faca.

- Acalme-se Judá. – diz a moça, de modo carinhoso. – Preciso de água e elas parecem saber onde encontrar. Belladonna, - diz, estendendo a mão para cumprimentar as mulheres. – essa aqui é Sarah, nossa filha.

- Não tem como saber se é uma menina.

Belladonna pensa em responder, mas ignora. Meninos viram homens, que fazem guerras e meninas se tornam mulheres, que resolvem os problemas que os homens causam. Mulheres querem tranquilidade e não poder. A ideia de que o ser que traz no ventre seja uma menina é, na realidade, a única razão para que ela ainda lhe empreste seu útero. Ela não queria sujar o mundo com mais um homem. Era assim que via a isso. Os homens não foram bem representados em seu caminho e era difícil para ela lidar com a possibilidade de que o bebê que traz no ventre pudesse ser um garoto. Fora isso, ela e não desejava ofendê-lo na frente das duas estranhas. Olhou para Frida, que parecia desconcertada.

- A senhora está bem?

- Sim... Eu... – não, ela não estava bem. “A menina está grávida, meu Deus...”. – Tenho bolacha, Belladonna, não é? Já comeu?

“Eu aceito.”

- Não tem como saber se está envenenada.

- Ora, pare com isso... – murmurou Hermínia, pegando sua água e oferecendo a moça.

Frida olha para o céu que, em poucos segundos, ganha um tom mais claro. “Precisamos nos abrigar...” pensou alto, e olhou para Hermínia. – Estamos longe da água?

- Não sei se dará tempo de chegarmos aonde encontrei água.

- Já começou a amanhecer e posso escutar, distante, os tanques que começam a espreguiçar. Dormi por aqui a pouco tempo. Sei onde podemos nos abrigar.


CAPÍTULO 2



            Quando não se vigiavam diretamente, Judá e Frida mantinham um ao outro sob o olhar periférico. O grupo seguia a Frida pelas ruas frias e surpreendentemente claras pela palidez da luz da lua que brilhava sobre as ruinas de concreto da cidade silenciosa. Cada passo, por mais silencio que buscassem fazer, fazia-se sobre pedras e coisas que atritavam. Pedras, areia, madeira, cimento que esfarelava exposto ao tempo.

Havia uma quitanda explodida aparentemente por um canhão de tanque. “Aqui”, murmurou Frida, entrando. Havia gondolas vazias, derrubadas sobre o que pareciam ser pessoas e muito sangue seco pelo chão, ignorado pelos pés apressados do grupo que passaram por cima e foram até o fundo.

Havia uma casa simples no fundo da mercearia. Os andares superiores pareciam ter sido pulverizados e o fundo da casa desabado num penhasco, o que permitia que a sala da casa, com dois sofás e um bonito tapete, tivesse uma vista panorâmica infinita para os primeiros raios do sol que nasciam no firmamento, e para o primeiro avião que cortava o céu e derrubava um míssil, causando uma imensa explosão a alguns quilômetros à frente. Começou o dia. Era hora de descansar.

Belladonna se esparramou por um dos sofás, e deu um sorriso a Frida, como se a agradecesse. Realmente era o lugar mais cômodo que ela encontrara em semanas de andança. A moça cruzou as pernas, tirou as sandálias e colocou os dedos das mãos entre os dedos dos pés, separando-os e massageando. Judá se sentou e pegou no pé da moça e começou a massagear. Hermína começou a rir.

            - Tenho nojo de pés. Uma vez vi um cachorro com um pé de homem na boca.

            - Que comentário inadequado. – cortou Frida. – Deixe a grávida descansar.

            - De onde vocês vem? – perguntou Judá, com uma voz simpática e olhar cínico.

            - Você podia responder a isso primeiro, o que acha? – sugeriu Frida, como se, simpaticamente, deixasse claro que o desafiava.

            O rapaz riu, ela riu, e se sentou ao lado de Hermínia. Tirou três bolachas de sua sacola. Hermínia segurava o saco de juta de uma maneira estranha que chamou a atenção dos três. Como se acariciasse com as pontas dos dedos. Olhava para os aviões atirando uns nos outros lá fora e cantarolava murmurando qualquer coisa.

            “Ai, ai...”, bocejou Hermínia. – Chega de hoje por hoje. – E se acomodo no braço do sofá.


            Todos pareciam acomodados e dormindo, menos Frida, que observava Judá de canto de olho. Sentia as pálpebras arderem e a respiração descompassada pela exaustão. Ele lhe parecia alguém, lhe lembrava algo, ou simplesmente era um homem. Ela observou a roupa dele. Vestia uma roupa masculina elegante, apesar do extremo desgaste e sujeira. Parecia uma veste militar. Alguma farda de algum lugar que ela não conhecesse. Mas a roupa podia ter sido encontrada em algum cadáver que tenham visto pelo caminho.

Não. Ele falava firme. Com voz grave e pontuava as afirmações em sua fala. Mesmo com uma emoção hesitante, fazia questão de estufar o peito, sorrir com os cantos dos lábios para baixo e com olhos frios e insensíveis. Tem os ombros largos, como quem pratica exercícios físicos, embora tenha flacidez. Ele era manco. Deve ter merecido esse destino. Não parece ter nascido assim. Cruzou o caminho de alguém maior que ele. “Provavelmente...”. E a moça... Ele parece gostar dela. Mas é um homem cruel. “Já vi pessoas que olham assim...”. Será que está dormindo mesmo?

Ela se levantou e se aproximou da beira do precipício na sala. Algum míssil antiaéreo derrubara um avião diante de seus olhos, lá fora.

- Tenta dormir mulher... – murmurou Hermínia, que se aproximava dela. – A caminhada amanhã vai ser longa.

- Não sabe pra onde vou. – respondeu Frida, ao pé do ouvido.  

- De todo modo precisa estar dormida.

- Não com esse homem por perto. Não confio nele.

- Eu também não confio nele. – murmurou Hermínia, como quem faz uma fofoca – E também não confio em você. Nem você em mim, nem nele. Nem nela. A gente já sabe que os quatro precisam de água e comer comida. Não somos tão diferentes assim... – e segura no ombro da mulher – desconfiança demais deixa todo mundo doido e ninguém sai do lugar.

- Não seja ingênua. – respondeu Frida, virando-se para dentro e caminhando até perto da porta por onde entraram na sala.

- Mas eu disse alguma mentira? – cochichou Hermínia, soltando os cabelos.

Frida mediu a mulher com desdém, e olhou para o casal. Permaneceu os olhos pousados na barriga da jovem.

“Já tive um filho”, ela murmurou com a sensação de quem engole areia.

- Perdeu ele pra guerra?

- Ele caiu num rio e foi embora – ela disse como se não se importasse e se estivesse acostumada a pensar e falar sobre isso. – Não dormi por dias. Não comi... procurei por meses. O rio levou o meu menino e o mundo não fez nada para me ajudar.

- Ô, Frida. O mundo é ocupado demais pra se importar com o que acontece com a gente.

- Fala como se aceitasse isso.

- Eu não aceito nem desaceito, - cochichou ela, como se conspirassem algo – é o que é, como é. Todo mundo perdeu um filho levado pelo rio. Um pai, mãe, irmão, um sonho, a família, um cachorrinho. A juventude ou a dignidade. Eu sei que “eu” não perco o sono pra ficar acordada com medo de gente. Porque se eu correr perigo, dormindo ou acordada, vou me ferrar do mesmo jeito. Já se não tiver correndo risco, é tempo que eu perco pensando bobagem. E preciso tá dormida pra andar no dia seguinte.

Frida encarou a “amiga”. Ela não estava errada. Frida até sabia que as coisas eram objetivamente mais simples do que a maneira com que seus sentimentos escolhiam lidar, mas parecia que lidar com simplicidade pudesse soar como uma traição à importância que suas tragédias tiveram em sua vida.

- E pra onde vai?

- Pra casa.

- E vem?

- Da guerra. – Murmurou Hermínia, mais pra dentro que pra fora. Permaneceu em silêncio por um instante ao perceber que sua resposta era vaga. A guerra estava ao redor daquela pequena caravana. – Não essa aqui, Frida. Golgota.

Silêncio.

- Impossível! – exclamou Judá. Frida o encarou incomodada. Então o filho da puta estava acordado e ouvindo toda a conversa. – Meu avô lutou em Golgota. Foi há muito tempo.

- Não disse que foi ontem. – Hermínia diz, abraçando sua sacola velha.

- Muito distante, Hermínia. – retrucou.

- Não disse que foi perto!

- O que tem nesse saco? – indagou ele.

- Teu cú! – bradou Frida – Vá dormir.

- Calma, Frida! – Hermínia segurou a amiga, que parecia seguir um crescente de fúria.

- Dona Hermínia, o que tem nesse saco? – insistiu Judá.

- Teu cú! Ora essa... – reclamou a mulher – Me deixe em paz.

Belladonna acorda tateando pelo sofá tentando mudar de posição. “Mas o que tá acontecendo?” pergunta ela, confusa.

- Elas estão escondendo algo.

- Todos escodemos alguma coisa. Vamos, Judá, querido. Preciso dormir. – choramingou a moça.

- Eu tô tentando te proteger! – respondeu ele com rispidez. Ela tocou na mão dele “Eu agradeço”, como quem pede para que a pessoa pare de fazer o que quer que estiveja fazendo.

- Não esteve em Golgota! – ele exclamou, indignado com o assunto. “Ó, isso vai longe”, reclamou Belladonna. Ele continuou – Meu avô foi pra Golgota e nunca mais voltou. Meu pai foi e ficou em uma batalha no meio do caminho. Morreu. Golgota é onde começou tudo.

- Dizem. – Acrescentou Frida num tom de quem sabe o que está falando. Todos ficaram silenciosos. – Dizem que começou num assalto. Na zona norte. A pessoa reagiu, todo mundo se envolveu e como um tumor que se espalha, a confusão tomou o mundo.

- Ninguém voltou de Golgota. – Judá comentou seguro do que diz. Aparentemente essa era uma informação que ressoava como um fato diante de todo o grupo, pois mesmo Frida não quis responder a isso e encarou Hermínia.

“Eu voltei, ué”.

- Como? – perguntaram Judá e Frida quase simultaneamente.

- O que aconteceu lá de verdade? – perguntou Belladonna, curiosa, mas num tom afetuoso. Hermínia pareceu esvaziar o ar do corpo e respirou profunda e tristemente.

“Todo mundo lutava pra defender algo que nem sabia o que era... E todo mundo morria”.

Os outros permaneceram em silêncio. Ela teria que falar a respeito. Não tinha como fugir disso. Era sempre insustentável quando as relações chegavam a esse tema. Escolher o que dizer, ou como dizer.

            “Bem, papai e mamãe saíram pra trabalhar e me deixaram com Tomé, meu irmão, que, bem, prometeu não me deixar sozinha. Naquele dia chegou um homem no portão convocando-o pra guerra e ele teve que ir, mas não podia me deixar sozinha em casa, então me levou junto. Eu fui.”

            “... Chegamos na batalha. Explodia bomba, gente pegava fogo e esquecia o próprio nome. Tinha filho de todo mundo ali, gente que estava voltando da escola, indo pro 1trabalho, mas achou o fim por lá mesmo, no meio da briga de algum desconhecido. Todo mundo morreu. Menos eu, que não tava na guerra, era só companhia do meu irmão. Ele morreu e eu voltei.”

            - Como? – perguntou Frida.

            - Andando... – suspirou ela. – Eu tinha 6 anos quando comecei a voltar e to vindo até hoje, pra dizer pros meus pais que vivi. Eles não sabem nada além do bilhete, né, que... Bem... Deixamos antes de sair. Às vezes eu percebo que estou no caminho errado. Volto. E recomeço.

            - Já pensou se está há cinquenta anos andando na direção errada? – Frida indagou com uma indiferença.  – Ou se... Seus pais já estiverem mortos.

            - Meu Jesus não faria isso comigo. – Choramingou ela.

            “Jesus morreu, dona Hermínia.” afirmou Judá como quem encerra um assunto. – Eu vi. Com estes olhos que olham agora pra você.

Judá respirou fundo. Ele constatou um fato. Uma informação trivial. Banal. Algo que disse com a segurança de quem sabe o que diz. Mas se sentia triste em dizer isso. É como se sentisse falta de algum tempo passado em que acreditava ser possível ter esperança. Ele inclinou o corpo para frente, balançando os braços na tentativa de usar seu peso para conseguir se levantar. Em pé, deu dois passos tentando encontrar apoio para se equilibrar. Caminhou até a parede e ali apoiou o quadril para alongar o peito e os braços. Soltou o ar devagar. As mulheres olhavam para ele como se esperassem que ele dissesse algo.

“Ele voltou. Dizia coisas bonitas que fazia as pessoas crerem que pudessem viver em paz. Era um garoto preto que vivia nas proximidades de uma fazenda de gente muito rica. Tinha dezessete anos. A mulher da fazenda fora encontrada morta, vítima de estupro e o pobre garoto era o preto mais perto que soubessem. Foi um julgamento rápido, uma sentença imediata e pérfida. Naquele mês de maio – Eu Sou inocente! – ele disse, ao que o juiz respondeu com um indiferente – Culpado. – e antes que o martelo batesse o pobre menino fora arrastado para fora da corte, despido, linchado, castrado, dedos, mãos, pés cortados e queimado vivo.

“Venderam e guardaram pedaços dele como troféus e relíquias. Semanas depois descobriu-se que a mulher, quem abusou e matou fora o próprio marido. Que continuou livre, e ninguém se importou”.

- Minha mãe dizia – começou Belladonna – que uma moça de nome Fabiane daria à luz ao segundo advento, mas antes que fosse gerado teria oferecido a uma criança uma fruta, e foi linchada por um boato de que seria bruxa e morreu, sem que sua vida tivesse tempo de ter qualquer significado.

- Foi num mês de maio, também. Eu soube dessa história na época e acredito que possa ter conhecido essa moça. – Hermínia acrescentou – Porque ela era afilhada de Maria e Jesus, e era uma moça que pouco dizia aos poucos que a conheciam. Era diferente.  Jesus é padrinho de todo mundo que a gente acha diferente. Ou estranho. – apertou sua sacola, como se resgatasse alguma dor em seus pensamentos. – Acho que porque ele sabe que as pessoas, às vezes, bem... Às vezes fazem coisas não tão boas umas às outras.

- Uma... – droga, pensou Frida. Entraram num assunto que não deveriam e o grupo a olhava agora com expressões de cumplicidade e esperavam que dissesse algo notável, sem demonstrar intenção de julgamentos. Mas não deveria falar isso, ou sobre isso. Deveria apenas chegar ao local em que havia água, encher suas garrafas e seguir seu caminho sozinha. Sentiu o coração descompassado, sentiu-se nua além da carne. – Uma mulher, uma vidente – e continuou hesitante – ela me disse que eu daria luz ao filho de Deus.

Hermínia cobriu a boca aberta com a mão e fez um olhar de piedade.

- Meu filho morreu. Em vão. Como o cão de um vizinho que morre e a gente não se importa, assim fui eu com minha dor e o mundo ao meu redor.

Silêncio. Um silêncio constrangedor.

- O filho de Deus. – sentia vontade de chorar, mas a raiva ou constrangimento a impediam. – É em busca dela que eu estou.

- Bem, não era uma vidente competente, afinal. – Judá debochou. –  Todos são uma fraude e nada disso existe. A gente morre e fim.

Frida olhou para ele em silêncio. Ela queria responder que ele estava certo, mas não era verdade.

- Ela acertou. – Belladonna disse, como se pensasse alto.

- Por quê a vidente nunca joga na loteria? – debochou ele novamente.

- Elas jogam! – exclamou Hermínia.

- E não ganham. – riu ele.

- Quero conhece-la. – disse Belladonna. – Está muito longe?

- Creio que dois a três meses em direção ao sul. – Frida disse, tentando desencorajá-la. Era um pouco mais perto que isso. – Mas creio que poderá ficar desapontada.

- Não temos nada a perder.

- Está falando sé... Belladonna, não seja ridícula. – Judá estava indignado. - Desviar do caminho pra ir atrás de uma vidente?

            - Ah, eu quero! – exclamou Hermínia.

            - Preciso dormir. – disse Frida andando em direção ao sofá, sentando e cobrindo o rosto.

            Quem são estas pessoas, que se meteram no seu caminho, na sua jornada. Ela tinha que se livrar deles. Não podia chegar lá acompanhada. Não podia ou não queria. Não queria. Restava dormir e quem sabe abandoná-los quando fosse oportuno.

            “Calem-se”, pensou Frida consigo mesma. “Durmam pensamentos, sosseguem sentimentos”.






CAPÍTULO 3


 Judá assistia ao azul escuro que surgia no horizonte enquanto a luz do sol se dissipava do lado oposto do céu. Os barulhos de tiros começavam a ressoar mais forte conforme os ruídos da guerra reduziam. Uma última bomba derrubou a um prédio e ele contemplou aos breves segundos em que o edifício se convertia em poeira enquanto parecia ser engolido pela terra. Seu rosto brilhava com o roxo azulado do céu e seus olhos pareciam intactos, fixos e frios, indiferentes.

Mas atrás destes olhos havia pensamentos e estes vibravam e estremeciam a cada som de tiro e explosão. Abaixo desses pensamentos, bem pra baixo, havia um coração. Esse estava acelerado. Medo, raiva... Os pensamentos não sabiam traduzir. Há muito tempo que seus pensamentos não entendiam o que havia em seu coração. E os olhos e a seus atos ou sua fala lhe soavam cada vez mais distantes da razão.

Uma vidente, caso existisse tal coisa, poderia ajudá-lo a compreender como chegou aonde está, ou se teve alguma responsabilidade nisso tudo, ou ainda, se era mais uma vítima do mundo. Mas isto não existe, são apenas pessoas charlatãs, quando não: esquizofrênicas. E por tanto ele morrerá sem entender qualquer coisa de si mesmo. E estava conformado.

Mas esta mulher... A que ameaça, a que afronta, falou sobre uma vidente e todas as outras querem acompanha-la. E ele está agora entre três mulheres, correndo o risco de uma quarta nascer, e isto é uma ameaça.

É uma ameaça.

Quem, pois, entende o que se passa na mente de uma mulher? Mulheres nunca mandam, mas sempre estão por trás de tudo. Por trás, ao redor. Geralmente em silêncio, às vezes sorrindo. Enquanto homens se gabam por suas conquistas, elas compartilham suas experiências, malícias, planos, segredos e até mentiras, acumulando, por gerações, o conhecimento de uma biblioteca oral de assuntos que durariam o infinito.

São boas em agir pelas costas, boas em armar complôs e motins. E ele era o homem ali. Determinado a proteger, acolher, alimentar, mas sabia que seria a qualquer momento renegado a canalha por uma e, concomitantemente, todas. Pois uma única mulher tinha a habilidade de fazer com que todas odiassem a um mesmo homem. Formavam uma colmeia sempre que em grupo, onde uma escolhe o posto de rainha, a pensar e conduzir as outras, que se levam por emoções, tornando-se capazes de cometerem atos que, por si, veriam como injustos.

Rodear-se de mulheres era sempre um risco, pois elas sempre conspiram. Ele precisa afastar Belladonnna dessas mulheres antes que seja tarde. Antes que sejam quatro, antes que sejam cinco!

Ouviu um bocejo e virou-se para trás, as mulheres dormiam, menos Hermínia, que se espreguiçava.

            - Você não dormiu?

            - Um pouco. O bastante. – disse ele. Mirou os olhos em Frida – De onde se conhecem?

            - Ah, Judá, eu a conheci algumas horas antes de encontrar vocês.

            - Parecem amigas.

            - Bom, no fundo a gente já se conhece. – E gesticulou como se o incluísse na conversa. – Eu tive essa sensação, ontem, quando acordei, de algum jeito estranho parecia que alguma coisa boa ia acontecer. Eu estava andando sem cruzar o caminho de ninguém fazia quarenta e três dias. E olha só, estamos aqui! Temos companhia, alguma coisa pra comer e logo mais água.

            Judá a media e se sentia desconfortável, pois, apesar de não acreditar nessas coisas, era muito intuitivo e costumava estar certo sobre poder confiar nas pessoas, e Hermínia lhe parecia apenas uma mulher velha, ou quase velha, que podia ser sua mãe ou irmã mais velha. Mas era uma mulher, e estava com aquela outra.

          Três horas depois o grupo já estava saindo pelas ruas pálidas e era assim toda vez em que a noite caia. Todo começo da noite havia uma névoa de poeira alta e as partículas refletiam a luz da lua parecendo uma neblina clara e sinistra que parecia engolir as pessoas. Era, talvez, alguma espécie de milagre que parecia surgir como uma maneira de permitir que as pessoas cruzassem os caminhos umas das outras sem se perceberem.

O grupo chegou a um hotel incendiado onde encontraram uma fonte no átrio e um grande volume de água parada. O fundo limoso, cheio de larvas de mosquito.

- Ah, meu Deus, tire ela daqui, Judá! – disse Frida, apavorada, afastando Belladonna – Hermínia, por que não disse que aqui tava cheio de mosquito?

Judá entregou todos os recipientes que tinha para guardar água e foram para um escritório do outro lado da rua. Enquanto o casal montava uma pequena fogueira, Frida e Hermínia recolhiam a água para que fervessem depois. Hermínia sugeriu a Belladonna que tomasse um “banho de gato“, tão logo a água esfriasse, e acabaram todos por se banharem antes de seguirem até o próximo abrigo antes do amanhecer.


Decidiram tirar uma noite para dormir, pois era excepcionalmente exaustivo viver longas jornadas noturnas para dormir durante o dia, tempo em que a guerra acontecia. Belladonna percebeu a noite, na cobertura aberta do prédio comercial onde se abrigaram, que Hermínia cantarolava qualquer coisa infantil sozinha e sentira-se constrangida ao ser flagrada. Dançava distraída, abraçada com o saco de pano.

- Tá bonita a noite, né? – disse a mulher, parecendo contente.

- Se olhar somente para o céu e fingir que meus pés estão em algum outro lugar... – pensou alto a moça, olhando para um céu que parecia um manto celestial encrustado de pequenos diamantes. – O que havia, Hermínia? – e a mulher olhou para ela sem entender a pergunta. A moça continuou. – Antes da guerra? Como era o mundo?

- Era um mundo que quis pagar pra ver. – disse, displicente. – Não era muito melhor que isso, não.

Belladonna pareceu ficar decepcionada por um instante, mas percebeu que, de fato, era uma resposta óbvia. Isso não poderia ter acontecido de um dia para o outro. Hermínia continuou.

“Era um mundo cheio de gente chata que avisava que ia dar merda, gente teimosa que não ouvia e gente arrogante que não fazia escolhas pra poder falar mal de todo mundo se isentando, e depois, gente chata que por um tempo disse “eu te avisei”, acho que todo mundo tava errado em alguma coisa, por que se alguém tivesse certo, teriam conseguido avisar de verdade. Porque avisavam debochando, avisavam provocando, e aí, bom. Por pirraça, deixaram chegar nisso. E entenderam a besteira toda quando já tava todo mundo sem casa, sem água e sem comida. Mesmo quem achava que nunca passaria por isso. Mesmo assim, por muito tempo, era uma coisa lá longe. Golgota...

“Demorou pra espalhar, e espalhou pois todo mundo pensava que tava “lá” e a verdade é que “lá” não existe, o mundo é o mesmo globo. Ou o mesmo prato. Enfim, até com isso brigavam. Então era igual hoje, menina, só que as pessoas tinham comida, eram felizes e não sabiam.

“Hum”, balbuciou Belladonna. Era decepcionante pensar que os antepassados de todos que pelo mundo andavam tivessem sido tão prepotentes, egoístas e irresponsáveis. Subestimado o mal, cedido a fanatismos proféticos. Mereciam ser perdoados? Ela não sabia. Sentia raiva, como se não merecesse nascer neste mundo, pois não o causou. Olhou para uma estrela, uma entre três que parecia no meio de uma ampulheta.

Sua mãe chamava aquela estrela central de Trono do Meio. Pois no meio da ampulheta o tempo está em cima e embaixo. Ali o tempo pode ser revivido para ser consertado. “Nunca mudar o passado”, mas voltar o espírito ao passado ajudava a escrever um futuro melhor por entender de onde tudo veio. “Ah, minha mãe...”, pensou.  Onde estaria sua mãe? Derramou uma lágrima.

“Vai dormir, menina”, Hermínia acariciou os cabelos de Belladonna. Ela se sentia segura perto dessas mulheres. Quem sabe não seria o tal destino. Mas por hora, basta. Melhor dormir.


Acordaram e passaram o dia entre cochilos e conversas, e Judá descobriu que conhecia a região onde o tal oráculo se encontrava. Deveriam partir em viagem por seis semanas em direção a noroeste e após vinte e dois dias seria o tempo de fazerem uma pausa para descansarem novamente, engordarem, e um período possível para o nascimento de Sarah, ou Efraim, se fosse menino, pois era nome de um antepassado de Judá. Parariam ao encontrar um local com água e retomariam a jornada. Judá percebeu que Belladonna estava mais gentil e conscienciosa com ele por ele ter aceitado formar esta caravana com Hermínia e Frida, embora, à sós, tivessem entrado em acordo de que após a visita na vidente, partiriam sem as mulheres.


Seguiram.

Por quinze longos dias. Andavam em ruinas à noite, e de dia se escondiam. Dormiram uma noite, e retomaram a jornada. Conversavam bem menos do que pensaram que aconteceria, para a sorte de Judá e Frida, que pareciam amarrados a este grupo sem que tivessem escolhido, embora pudessem ter negado e não o fizeram. E sabiam que de alguma maneira incompreensível, estavam exatamente onde e com quem escolheram estar. Era para estas pessoas cruzarem a seus caminhos e alguma coisa viria daqui.

Certa noite, fazia muito frio, e Belladonna sentia dores nas pernas. Perceberam que precisavam andar menos horas e mais lentamente a cada noite, e que a fome dela aumentava, e encontrar comida era uma questão de sorte. Teriam que passar por um “ponto quente” da guerra para cortarem caminho, e não cortar caminho significaria se expor a um risco muito grande por não terem um lugar seguro quando a moça parisse o bebê, que já poderia nascer a qualquer momento.

Andavam entre tanques com bandeiras diferentes umas das outras, barracas cheias de soldados dormindo. Não podiam fazer barulho para não acordá-los e retomarem a batalha. Também não poderiam se abrigar por ali, pois qualquer um destes prédios poderia não estar de pé até o fim do próximo dia. Era como andar sobre pregos ou carvões em brasa.

O grupo estava apreensivo e a preocupação era generalizada. Hermínia, porém, parecia aflita, como se quisesse dizer algo mas tivesse medo. Ou dúvida.

Frida ofereceu o braço a Belladonna e Judá decidiu caminhar ao lado de Hermínia, e lhe perguntou o que se passava.

- Tem um lugar onde eu acho que a gente pode descansar por um ou dois dias, mas eu não sei se vocês vão gostar...

- Por que não iriamos gostar? – indagou Frida, ouvindo a conversa.

- Porquê é um Templo da Religião.

- Já dormimos em lugares mais assombrados! – caçoou Judá.

- Não tá abandonado. – Murmurou a mulher. – A gente precisa ir pra direita e seguir pra sempre.

- Que tipo de gente tem lá? – perguntou o homem.

- Gente da religião. Eles são bem carinhosos, e bem “apegados” – e fez uma careta engraçada. – São gente boa.

- Não deve ter mais templo religioso nessa cidade, Hermínia. – disse Judá. – Quanto tempo faz que passou por aqui?

- Tem sim. – ela respondeu. O grupo escolheu conferir o templo, pois realmente era um lugar hostil e o templo parecia uma espécie de zona neutra, e era tudo o que precisavam.

Chegaram diante de um edifício colossal e magnífico de se contemplar. Toneladas e mais toneladas de pedra, aço e concreto numa edificação iluminada que parecia alheia a toda a guerra que acontecia fora e ao redor, e que parecia fechar o cerco mais e mais a cada dia em torno do templo, ou então, parecia que a guerra teria começado ao redor dele e se espalhado pelo mundo. Olhar para ele era inevitavelmente perguntar se ele seria o sinal do fim de tudo, pois ele parecia sensivelmente confortável em meio ao caos.

Bateram na porta. Uma das portas. Uma das tantas esculpidas na madeira e folheadas a ouro, falso ou legítimo. Tanto faz. Era dourado, ostentoso. A porta de abriu. O que encontrariam ali dentro? Perguntavam-se confusos, temerosos. Era estranho ver a um lugar aparentemente intocado pelo caos.

Mas voltemos aonde a história estava. A porta se abriu. E havia uma pessoa feliz em recebe-los. São tempos de guerra e aquele lugar realmente parecia abençoado. E aquelas pessoas pareciam compreender que a vida lá fora era sorte ou revés, era destino, ou não, e chegar ali era para ser visto sempre como um sinal. Os quatro pareceram surpreendidos em como se sentiram felizes por terem encontrado aquele oásis em meio ao fim do mundo. A pessoa que abriu a porta os abraçou e acolheu. Era aconchegante, não era frio como na rua, ou nas ruinas aonde abrigavam-se de maneira errante.

Hermínia disse que deveriam compartilhar o que tinham de água, comida, medicamentos. Era um preço inquestionavelmente justo. E estarem por estas semanas juntos os havia ensinado que dividir pode mesmo significar multiplicar. E dividir com um número muito maior de gente pareceu transformar quase nada, que em grupo virara algo, em uma milagrosa abundância.

Havia um refeitório, onde comeram arroz, tutu de feijão e alguma folha verde cozida que parecia ser criada de maneira hidropônica. Era tudo fresco, quente. As pessoas perguntavam suas histórias e eles contavam alguma mentira bonita ou comovente que afastasse as pessoas se saberem quem realmente eram, mas que causassem reação de empatia e que encerrasse o assunto de maneira fraternal, o que, dissera Hermínia em segredo, parecia uma prática comum no local.

Descansaram em colchonetes que pareciam limpos. Alias, não havia uma extravagante abundância de água, mas havia água potável e o povo estava asseado. Os sacerdotes cheiravam a sabonetes. O povo apenas limpava-se do suor e estava bom. O povo tinha um aspecto saudável moderado, e os sacerdotes e sacerdotisas pareciam levemente “engordecidos” pela convivência em congregação.

Mas o povo não se importava, os sacerdotes podiam até comer mais do que eles, e melhor, mas eles eram bem cuidados e isso precisava ser devidamente reconhecido. Tinham amparo. E esse amparo foi recebido pela pequena caravana com muita gratidão.

Tiveram um sono tranquilo, acordaram no dia seguinte e descobriram que ali viviam mil e trezentas crianças, que estudavam e pareciam ser preparadas para em algum momento repovoar o mundo, ou qualquer coisa parecida, cerca de quinhentos voluntários e quase quatro mil habitantes, entre crianças menores, adultos e idosos.

Quando perceberam isso, começaram a ficar surpresos, confusos, e um pouco desconfortáveis. O mundo está pegando fogo lá fora, afinal. Parecia que este lugar era um presente de Deus, uma plenitude fantástica. E esta plenitude definitivamente parecia absurdamente fácil de se possuir.

Horas mais tarde, houve uma cerimônia da religião daquele templo e o sacerdote subiu no púlpito.

- Conheço ele! Era famoso quando eu era criança. – exclamou Frida aos companheiros, no meio da multidão. Os desconhecidos ao redor pareceram ficar contentes com a observação dela. Mas ela não lembrava de alguma coisa. Ela olhou para seus acompanhantes e parou os olhos em Judá, que olhava para o sacerdote como se tentasse lembrar de algo.

O homem falou sobre como a guerra era uma resposta da divindade a qual rezavam para perversidade no mundo, dos exageros em prazeres, a promiscuidade. “Ah, lembrei de você” pensou ela. Frida continuou escutando atentamente. Hermínia parecia achar tudo muito bonito, balançava a cabeça concordando, mas sem empregar nenhuma profunda emoção com as palavras ditas, e Belladonna parecia comovida.

Parecia, enfim, ter descoberto os culpados pelo mundo em ruínas no qual teve de crescer e isso lhe permitia se desconectar de quaisquer comportamentos que ela pudesse ter, herança de seus antepassados, que lhe fizesse responsável pela própria miséria. A culpa era dessa gente, então.

Após a cerimônia, as pessoas celebravam a vida cumprimentando umas as outras. Parecia que pelo menos dois terços das pessoas com as quais conversaram nunca viram o mundo lá fora e só o entendiam com base no que os sacerdotes lhes dizia. E era para eles acalentador poder contar com o amor e prestimosidade de seus sábios.

Isso causara incômodo à Belladonna, pois falavam sobre ter pena das pessoas sofrendo lá fora, sem realmente entender que sofrimentos eram esses e focavam num mundo futuro em que eles fariam tudo dar certo a sua maneira.

Uma coisa que a vida lhe ensinara é que não se compartilha a própria desgraça com alguém que não seja capaz de compreendê-la. É perigoso moral e até fisicamente.

Judá caminhou até uma pequena capela, aonde rezaria sozinho. Não que realmente fosse rezar, pois sequer sabia como fazer, mas pensou em ajoelhar e tentar sentir ou pensar em coisas boas. Coisas da alma. Um homem veio até ele. Um homem velho, mas de voz firme e extremamente viril e que vestia-se com uma farda gasta mas em muito melhor estado que a suas vestes.

- Vi que é um soldado.

- Não sou. – respondeu Judá.

- Foi um, então. Reconheço o olhar, a desconfiança. Isso é um préstimo. É de poucos.

- O senhor esteve na guerra?

- Estou. Vim aqui porquê, de tempo em tempo preciso. – disse o homem, como quem abre o coração. – Eu havia matado seiscentos e sessenta e seis homens desde a última vez que vim aqui pedir perdão pra divindade a qual creio em minha religião. Agora estou aqui há dez dias. Que é o tempo que preciso para sentir a falta que matar gente me traz.

- E te aceitam aqui?

- Sim. Eu trago para eles ouro, comida, ou o que consigo saquear dos que matei, e aí eles me aceitam aqui. E aqui eu permaneço até meu pau voltar a ficar duro de saudade de pegar no fuzil e matar gente. – riu sincero e afetuoso. – E você, irmão?

- Meu pau ainda não ficou duro com essa saudade. – respondeu.


As três mulheres foram acolhidas amorosamente por um grupo que queria saber tudo sobre o bebê que Belladonna esperava e ficaram constrangidas quando ela foi ríspida sobre parir a um filho homem.

- Afinal, - perguntou Hermínia, quando as três conseguiram se isolar das demais. – E se nascer um menino?

Belladonna olhou para Hermínia com ódio.

- Jogo do alto de um prédio.

Hermínia ficou muda e emocionalmente abalada, pois Belladonna realmente quis dizer o que disse. Frida fez que não com a cabeça quando Hermínia ameaçou tentar tocar no assunto uma segunda vez. Frida a entendia. Não sabia o que a menina havia passado, mas sabia o que ela própria passara e tinha sua aversão ao gênero oposto. Mas escutar a isto a fez se questionar sobre o quanto realmente lhe importava odiar homens.

Sentia falta de seu filho, sentia falta do amor de sua vida. Sentia falta... Sentia falta. Seu filho não teria se tornado um homem mau ao crescer e envelhecer. Ou teria? Mas foram todos os homens de sua vida maus? Não, não foram.

- Não a questione sobre isto outra vez. – disse Frida num tom objetivo e formal quando Belladonna lhes deu as costas.

Dormiram lá uma segunda noite e no dia seguinte decidiram que ao anoitecer retomariam sua viagem. Aquelas pessoas, afinal de contas, foram acolhedoras e eles perceberam que começariam a se preocupar com o que havia de diferente. E teriam de escolher entre permanecer e começar a julgá-las em seu próprio espaço, aderir a essa hipnose coletiva ou sair. E sair parecia o adequado.

Sair não parecia o adequado. Absolutamente não.

Lá fora estava o mundo em guerra. Essas pessoas não entendiam o que era a ameaça que rodeava o mundinho fechado delas, ao mesmo tempo, e se aquela ameaça nunca chegar aqui? Não seria a permanência uma escolha sabia? Seria ingratidão voltar para os riscos do mundo sabendo deste local aparentemente seguro?

Mas tempos difíceis e grandes perdas fazem das pessoas criaturas desconfiadas. Talvez fosse burrice do grupo deixar aquele pequeno paraíso entre os homens para exporem-se a um mundo de calamidades e, afinal, não seria este o desejado lugar seguro para a criança nascer?

Belladonna havia gostado do lugar. As mulheres se dividiam entre o mundo das mulheres e o mundo dos homens. Parecia tão certo. Parecia funcionar. E foi um choque quando Judá revelou a Belladonna que partiriam ao cair da noite e que ela deveria repousar. Judá parecia incomodado com o pensamento de colmeia que parecia haver aonde todos eram iguais e de semelhante importância ou irrelevância.

Ela buscou apoio em Frida e Hermínia. Frida parecia querer partir por estar incomodada com alguma coisa que não queria dizer e Hermínia simplesmente sentia que compartilhara algo com eles e tivera o repouso buscado e era hora de partir.

Anoiteceu e o grupo chegou, feliz e grato, diante da mesma porta por onde haviam entrado dias antes. Os acolhedores anfitriões pareceram surpresos e tristes com a possibilidade de não terem sido suficientemente hospitaleiros. O grupo agradeceu, e os anfitriões insistiram para que ficassem, e explicaram sobre o mal insone que paira no mundo e que eles precisam estar unidos. Para sobreviver.

O grupo agradeceu mais uma vez o acolhimento e disse que precisavam partir.

Os anfitriões disseram que eles poderiam partir e voltar sempre que quisessem pois o templo da religião deles sempre estaria de portas abertas para recebe-los e vê-los partir quantas vezes a vontade da divindade a qual adoravam lhes permitisse.

A moça grávida, porém, precisa de amparo e não seria sensato sair, pois o mundo, afinal, é deveras perigoso, e mesmo para a criança. Eles poderiam partir, afinal, toda vontade deve ser respeitada e o livre-arbítrio é uma dádiva a ser honrada. Entretanto, porém, todavia, contudo, apesar disso, o bebê, afinal, precisa e merece ser bem recebido no mundo. E precisa de uma boa instrução moral, para que possa se tornar uma pessoa adequada para o mundo desejado pela divindade a qual adoravam em sua religião.

Mas eles não iriam deixar Belladonna para trás e Judá fechou a cara. E o punho. Frida sorriu com os lábios e olhou para Judá com um olhar severo que dizia claramente “Estou com medo” e “Não faça isso” e ele pareceu entender e disse que agradeciam o zelo e era bom poder saber que eram tão amados. Foram dormir.

A única hora em que as portas ficavam sem os afáveis voluntários era durante o dia. Pois de dia o mundo estava em guerra, então ninguém entrava, ninguém saia. Mas ao entardecer, ficavam como sentinelas caritativos a espera de oportunidades de acolher e fazer o bem a uma alma que buscasse amparo. Se quisessem fugir, teria que ser durante a cerimônia da fé do templo, que era durante o dia. Sair em hora de guerra era um risco irresponsável. Era pedir para entrar na terra de ninguém. Era se lançar de um precipício.

Ao mesmo tempo, como poderia aquele lugar bendito estar no meio de uma terra de ninguém intocado por tanto tempo? Seria proteção divina ou sorte? Descobriremos nos próximos parágrafos.

Os dois dias seguintes foram dois dias em que perceberam que a iniciativa do grupo de partir fez com que a congregação passasse a ter mais zelo por eles, resguardando-os, fornecendo-lhes proteção, conselhos, manifestando um genuíno interesse em compreender suas questões de vida, a fim de auxiliá-los a terem a tão sonhada paz.

Resumindo. Eles eram vigiados, controlados. Todas as palavras que usassem eram imediatamente convertidas em perguntas e conversas amistosas que buscavam fazê-los entrar em contradição. Havia um esforço em fazer quem desejasse sair dali se sentir culpado, moral e espiritualmente e qualquer possível ovelha desgarrada precisava ser controlada.

Mas eles, Judá, Frida, Hermínia e Belladonna aparentemente não questionavam o templo e seu funcionamento e apenas queriam partir, e isso fazia com que as pessoas mantivessem um nível de tolerância ao inspecioná-los. Mas precisavam convertê-los. Se sair, que seja para voltar, e se não voltar, que seja por ter morrido.

Mas um bebê cruzar as portas do templo...Este bebê é uma ovelha a ser arrebanhada para os fins da divindade a qual adoravam no templo daquela religião. Eles sentiram medo. Eles não. Elas. Ele estava pensando em como fazer para cair fora dalí, afinal não podiam perder tempo. Belladonna logo entraria no último estágio da gravidez e definitivamente Efraim não deveria nascer naquele lugar.

Na quinta tarde, um míssil pareceu irromper no grande salão cerimonial e explodiu uma parte grande da parede atingindo trezentas e oitenta e sete pessoas, causando muitas mortes e uma repentina onda de pânico e revolta. Naquela noite, o grupo percebeu uma distração nos voluntários, pois a ala hospitalar do templo estava cheia e caminharam em direção à porta. Belladonna parou. Eles a olharam sem entender.

Ela disse que sentiu uma contração.

Os três congelaram. Alguns voluntários apareceram, abordando-os. Eles disseram que acharam que alguém batera na porta. Os voluntários não acreditaram, mas não discutiram. Belladonna não reclamou outra vez. Frida acreditou que Belladonna estava mentindo. Dormiu, mas disse ao grupo que partiria sozinha na noite seguinte.

No fim, lhe parecia providencial.

Logo no amanhecer. Estavam todos na cerimônia, quando o teto desabou sobre mais de duas mil pessoas, e o povo sem pensar, abriu as portas e começou a correr pelas ruas, em pânico. Do teto desabado, desceram helicópteros que metralhavam a todas as direções.

Belladonna entrou em pânico. Judá começou a puxá-la. Ele queria gritar. Sentia ódio. Era um aleijado que mal conseguia se manter parado em pé e precisava correr de tiros, mísseis e bombas. Os quatro correram pra fora sem pensar, de braços e mãos dadas, até que Hermínia tirou a mão de Frida do seu braço. Hermínia não ia fugir?

- Apenas não olhem para trás – disse ela, chorando, e voltou para dentro do templo correndo. O grupo congelou. Saíram pela rua aonde havia dois ou três exércitos diferentes trocando tiros e tanques de guerra que pareciam procurar por vítimas aleatórias até de sua própria bandeira. Havia sangue por toda parte, pessoas gritando, aviões que pareciam aves que davam rasantes para capturar uma presa. Pessoas caindo, crianças chorando.

Cruzavam o que outrora seria uma avenida comercial e era agora uma terra vazia aonde soldados nos lados extremos tanto da direita quanto da esquerda trocavam tiros e o grupo parecia. Um míssil acertou a um prédio de vidro e caíram estilhaços matando a toda uma tropa e os três correram. E não havia um campo de batalha. E não havia um lado, não havia uma pátria. Havia anarquia, havia loucura, havia o desejo de matar, queimar, destruir. Não era uma guerra, era um vírus chamado ódio que parecia ter contaminado a todo mundo.

Frida nunca estivera neste lugar, nem Belladonna. Elas achavam que sabiam o que era o fim do mundo e elas apenas estiveram em sua margem, o que lhes permitia mais clareza que as demais pessoas que havia naquele templo, mas somente Judá parecia entender o que era aquilo, e a única frustração que sentia não era de descobrir a que ponto o mal poderia chegar, mas ser um homem quebrado que não podia correr e fazer mais.

Um homem agarrou a Belladonna e ele arrancou sacou sua faca e a enfiou no olho do homem até acertar no cérebro e torcê-la. Ele estava vivo, afinal. Gritou de ódio, de fúria, de liberdade. Pegou o fuzil do soldado abatido e começou a dar tiros, e a recolher a todas as armas de fogo que podia e a equipar a Frida e Belladonna, que apenas gritavam e se escondiam entre ruinas.

Chegaram ao subúrbio e esconderam-se num prédio. Subiram, subiram, subiram. Havia um agrupamento de soldados ali e Judá executou a todos de maneira que fez as mulheres olharem para ele com medo e tristeza. Ele era aquilo. Ele estava feliz, afinal.

Belladonna queria usar o revólver que Judá colocou em sua mão, mas tinha medo. Percebeu que seu medo não era de matar, mas de saber que saberiam que fez isso. Ficou frustrada. Era como ter a um fetiche incomum que a faria vista como delinquente.

Às sete e quarenta e seis da noite, e a guerra cessou.

Acolheram-se por algumas poucas horas naquele local aonde havia o agrupamento. Havia água e comida. Não conversaram. Frida chorou em silêncio. Ela viu pessoas felizes serem esmagadas por um desabamento. Pensou em Hermínia. Ela voltou pelo saco...  Pobre mulher...

- Afinal, que ignorância era essa de achar que a guerra nunca chegaria na porta deles... – chorou ela.

Belladonna não teve outras contrações, mas sentia o corpo doer. Hermínia surgiu entre os corredores do andar aonde o grupo se escondia e trazia sua sacola de juta abraçada nos braços.

- Estive rezando esse tempo todo, pra que estivessem bem.



CAPÍTULO 4 


Os três encaravam Hermínia e sua sacola, mas não faziam perguntas. Estavam exaustos, e apenas descansariam por mais uma hora e fugiriam o mais depressa até se abrigarem novamente. Não havia o que ser conversado.

Fugiram após comer e fazer suas necessidades. Andavam, andavam, e encontraram um local por onde a guerra já parecia ter destruído tudo há semanas e poderia ser um local seguro para repousar, mas era melhor seguir mais um pouco. Mas precisavam agora deixar as vias principais, por onde circulariam blindados e tropas, para refugiarem-se em algum local desolado. Mas eram apenas grandes avenidas.

Estavam se aproximando do local onde o tal Oráculo vivia, mas era uma região muito perigosa que precisavam cruzar, inadequada para de passar o dia. No meio da caminhada, Belladonna deu um grito e parou de andar. O líquido amniótico começou a vazar entre suas pernas. Eles trocaram olhares, apavorados. Começava a amanhecer.

- Segurem-na de cada lado. Eu sei fazer isso. – disse Frida. Judá e Hermínia apoiaram os braços dela em seus ombros e a seguraram pela cintura. E a apoiaram com as costas na parede – Agache e abra as pernas. Fique como se fosse fazer cocô. Segurem ela direito!

O bebê não saia. Estava demorando. Parecia demorar. Não se sabia. O tempo parecia suspenso. Ouviram um barulho de avião distante. O coração acelerado. O pânico, o terror. E eis que o bebê escorregou e começou a chorar. Era um menino. Ela o embrulhou. Com as roupas que tinham limpas.

- O que é? – gemeu Belladonna com um olhar calculista encarando a Frida.

Frida olhou para ela com medo.

- É uma menina. – disse, sem pensar. Judá sorriu. Belladonna sorriu, exausta. Deu um beijo nos lábios de Judá.

Frida cortou o cordão com a faca e enrolou o bebê nas roupas que tinham. Belladonna se emocionou com o som do choro do bebê. Frida segurou o bebê. “Como você é frágil”, pensou. E cantou uma canção que cantava a seu filho:

Ne timeas, Maria. Invenisti enim gratiam apud Deum. Hic erit magnus, et Filius Altissimi vocabitur, et regni ejus non erit finis.”

- Perdoe-nos pelo mundo que te recebe. – disse, e entregou o bebê à Judá, que beijou, e aproximou de Belladonn. “Minha pequena Sarah”. Entregaram o bebê para Hermínia e correram de esconder em uma lanchonete explodida e incendiada.

Deixaram Belladonna com Sarah e Frida numa sala escondida, e Hermínia e Judá permaneceram atrás do balcão, para observarem a segurança do local. Era manhã, e a guerra começou. Escutaram, ao longo de todo aquele dia tanques e pelotões desfilarem por aquela grande rua. O lugar em que estavam não era o epicentro de nenhum confronto, mas precisavam manter o silêncio e a discrição. Não podiam ser descobertos.


Passaram o dia tentando fazer o bebê não chorar enquanto permaneciam escondidos atrás de um balcão. Parecia que aquele lugar era apenas caminho, mas precisavam não ser percebidos. E assim que a noite caiu, começaram a andar tranquilamente. Deveriam chegar entre quatro a oito dias no oráculo.

Como haviam confiscado recursos da tropa morta por Judá, tinham água e comida, o que tornava a jornada um pouco mais confortável por continuarem alimentados e hidratados, entretanto, carregar peso tornava tudo mais exaustivo e foi com muita alegria que o grupo encontrou um carrinho de supermercado no estacionamento de um mercado. O mercado estava completamente saqueado, mas o grupo roubou o carrinho com entusiasmo.

Belladonna estava exausta, e Frida cuidava de trocar e limpar a Sarah e estava se sentindo culpada por ter dito uma mentira tão estupida. E se Belladonna, afinal, não se incomodasse com o fato de que gestara e amamentava agora a um bebê que trazia um falo entre as pernas? E se ficasse furiosa pelo bebê. Ou furiosa com Frida.

“Que merda”, pensou ela, limpando o bebê. “Burra! Estúpida!”. E Judá, o psicopata matador, o “macho escroto”... Certamente a odiaria por desonrar a masculinidade do fruto gerado por seu precioso sêmen. Ela sequer desejava estar acompanhada e havia agora se metido numa vida que não era de sua conta. “Coisinha linda”, beijou a barriga do bebê, e entregou à moça. Acabou a aflição, por hora.

 Por estarem com estomago cheio, a caminhada rendeu. Deslocaram-se quase trinta quilômetros ao longo de 3 horas e meia e encontraram um vilarejo abandonado onde conseguiram repousar antes da madrugada acabar.

Numa das vezes em que limpou o bebê, chamou Hermínia. Alguém precisava saber de seu segredo coscuvilheiro e Hermínia, talvez entendesse. E entendeu. Num momento em que ambas se afastaram para mijar, Hermínia lhe disse:

“Ela teria recebido a verdade apoiada em Judá e com a gente do lado”, murmurou, tímida, e tentando não usar um tom de julgamento. “Mas talvez tenha feito a coisa certa”.


- Será que nós não demos má sorte para as pessoas do templo? – indagou Belladonna de maneira introspectiva.

- Eles tiveram sorte por tempo demais e deveriam ter se dado conta de que ficar parado no mesmo lugar, inevitavelmente, faria o problema chegar maior e irreversivelmente. Não se culpe. – disse Judá, como quem dá uma explicação técnica desprovida de qualquer empatia. Elas ficaram em silêncio. “Mas eles eram pessoas boas”, murmurou Belladonnna, enquanto amamentava a sua filha.

- Eram. – murmurou Hermínia com pena.

- O sacerdote... – começou Frida. “Não era estranho”, murmurou Judá. A mulher continuou. – Quando eu nasci a guerra já tinha começado, mas ainda estava bem longe. Tinha quem dizia, e acabavam matando esses, que era um incêndio que o mundo, reunido, seria capaz de apagar antes que se alastrasse.

- Diziam. – murmurou Hermínia.

- O sacerdote dizia que a guerra era a resposta de Deus para o mundo que vivia em pecado.

- E não é? – indagou Belladonna.

- Não. – afirmou Judá. – Não é. Ou é, mas não pelo pecado que ele gostavam de dizer.

- Exato! – exclamou Frida. – Ele falava de mulheres adúlteras, homens que se vestiam como mulheres ou dormiam com outros homens, mas como estes pecados poriam fogo no mundo?

Judá parecia decepcionado. Realmente o mundo se repetia a cada nova geração, e as pessoas pareciam não querer reconhecer os crimes de seus antepassados. Reconhecê-los não seria para desonra-los, mas reparar as consequências. Ele odiava ter se tornado o homem manco, lento, falho, incapaz de manifestar toda a sua fúria. Mas perder o poder o fez ver o mundo pelos olhos dos fracos e descobrir aquilo que o mundo realmente é. Era doloroso se perceber no lado fraco e, estando deste lado, compreender o que ele fora  para o mundo durante anos. Um homem manipulado, servindo, pilhando, estuprando, escravo do caos para alguém engordar e dormir em cama limpa.

- Para uma pessoa dar tiro em outra alguém lucrou com a venda da arma, qual a razão para este pecado jamais ser lembrado por esses que falam das bichas ou das putas? Ambas me enojam, mas são tão lixo do mundo quanto nós, que vivemos do que sobra – balbuciou ele. – Não se iluda, Belladonna. O pecador esquecido pelos sacerdotes é esquecido porque lhe dá mais dinheiro. É o que pôs fogo no mundo, e enquanto a gente briga, enquanto culpamos uns aos outros, ele dorme seguro de que não teremos tempo de pegar de volta o que ele tomou de nós ou nossos antepassados.


Dois dias se passaram. Estavam chegando nas regiões de fora do centro. Em direção aos bairros mais pobres. Deveriam estar à poucos dias do tal oráculo. Nesses locais havia menos opções para abrigo, pois os bombardeios haviam sido mais intensos, uma vez que as ruas e avenidas não eram tão largas para confronto e a destruição mais eficiente seria a aérea. O que significava que era como caminhar numa zona morta. Pareciam imensos desertos com fragmentos de paredes sem qualquer distinção.

Acharam uma ruína qualquer aonde puderam se acomodar. Ali a guerra não surgia nem de dia, nem de noite. Embora de dia se ouvisse de longe o ruído do caos que, distante, soava como um som de mar distante. Parecia um lugar seguro, mas não era. Pois por onde a guerra passou recentemente, há o resto. Aqui há somente cinzas.

Surgiam os primeiros raios da manhã, Judá dormia com Sarah acomodada em seu peito e a bebê começou a chorar. Estava suja. Ele tentou acalmar o bebê.

            - Acho que tá cagada. – murmurou ele, com algum nojo. Frida levantou e a pegou e foi para outra direção. Judá a acompanhou. Ela ficou com o coração na garganta. A adrenalina percorria agora por suas veias. Hermínia acordou meio perdida e se levantou e foi até ele, tentando distraí-lo. Ele percebeu. Mulheres não mentem para ele com facilidade. Ninguém mente para ele com facilidade. Nisso a vida o treinou. E elas perceberam, pois imediatamente ele as olhou como se as ameaçasse.

            - Frida... – murmurou Hermínia, como quem autoriza alguém a algo. A mulher começa a desenrolar o bebê, e Judá vê o pintinho do bebê. Puxa uma faca.

            - Mas que porra é...

            Belladonna grita. Os três olham para trás, assustados, como se ela também pudesse ter acabado de descobrir o sexo de seu bebê, mas ela estava um pouco longe. Judá e Hermínia vão até ela e a encontram de costas. Frida se aproxima, sentindo-se culpada.

            Vejam – diz ela, e aponta. “Nossa!”, exclama Hermínia.
          
            E o grupo contempla uma muda de um pequeno arbusto saído das entranhas das ruínas de uma casa, com caule avermelhado e folhas que lembravam coentro e pequenas florezinhas.

            - Assim... – murmurou Judá. – Do nada?!

            - Isto é uma Artemísia. – disse ela, parecendo emocionada. – Ela cura tudo que é doença de mulher. Acaba com dor... Da descanso, energia. Vou pegar uma folha, ‘fazer chá pra vocês. – disse ela, simpática. Pareceu fazer um gesto como se pedisse licença para a planta antes de arrancar um pequeno galho – Eu não posso tomar, por estar amamentando, e Sarah morreria envenenada. Sorte sua ser menina. – e sorriu. – Pois me sentiria nova em folha se tomasse. Artemísia...

Frida cobriu o sexo da criança. Belladonna se aproximou e beijou a testa do bebê, que chorava por estar cagada. Em seus passos exaustos, a jovem foi preparar o chá. Judá olhou para Frida com ódio, mas ficou confuso sobre como reagir. Frida não o olhou de volta, olhava para a planta, com um olhar de constrangimento. Mais constrangida pelo comentário indigesto de Belladonna, do que pelo segredo exposto. Agora isso era muito mais um segredo de Judá do que dela. Ela finalmente teria uma noite de sono tranquila. Hermínia deu um tapinha no ombro dele e foi ajudar a Belladonna com o chá.



Dias haviam se passado e Judá parecia silencioso, introspecto. Belladonna percebeu, mas pareceu não dar importância. Ele se sentia sozinho. E ela se sentia sozinha até antes de cruzar o caminho destas mulheres. Ele era uma boa companhia. Conscientemente ela sentia gratidão, mas ela olhava para ele e esperava sempre que em algum momento ele lhe desse alguma razão para odiá-lo. No fundo, talvez, desejasse isso, e não lhe importava muito quanto bem ele já tivesse feito.

Frida tinha agora, de algum modo sinistro, a cumplicidade de Judá em cuidar de Sarah sem que Belladonna visse ao bebê sem roupa. Era uma sensação de estranhamento em todos que a jovem mulher não parecia ter curiosidade. As mais velhas lhe ajudavam, e ela era carinhosa ao amamentar, mas compartilhava sem grandes apegos o afago do bebê que, por sua vez, já havia se acostumado com o carinho das outras três pessoas.

Hermínia parecia ser apenas uma acompanhante, uma pessoa que parecia apenas seguir o fluxo sem qualquer protagonismo. Os mantimentos roubados estavam acabando, e por estarem em um local isolado, parecia que seria pouco provável que encontrariam algum resto de qualquer coisa para comer. Essa preocupação era um tabu. Todos tinham, nenhum dizia.

Numa noite quente com ventos frescos, o grupo dormia do lado de dentro de um imóvel indistinguível, sem teto. A bebê dormia no colo de Judá, que roncava relaxado. E as mulheres tentavam dormir, embora houvesse uma sensação vazia que as fazia parecer sempre a um passo de dizer alguma coisa, mas permanecessem em silêncio.

- Falta muito pra chegar? – perguntou Hermínia, deitada sobre uma parede lisa.

- Amanhã, depois de amanhã... – murmurou Frida, pouco ansiosa.

- O que vai perguntar pra ela? - Indagou Belladonna.

Silêncio. Frida não havia pensado nisso objetivamente. Ela olhou para as companheiras com os olhos franzidos e ameaçou um sorriso, por um instante, e voltou a um olhar perdido.

- Sobre o futuro. Sobre... Na verdade, não sei. Acho que quero entender por que o mundo foi assim comigo.  Você?

- Quero saber se falta muito pra minha casa. Se estou na direção certa...

- Quero saber onde tem bastante comida. – riu Belladonna. “Ah, bastante comida!” exclamou Hermínia, baixinho. Frida riu.

- A última vez que comi de me empanturrar foi quando a gente fugiu. – Belladonna disse, sem pensar. As duas trocaram olhares e olharam para a moça com cumplicidade.

Belladonna ficou silenciosa. Não devia ter dito isso. Agora ficariam curiosas. Um avião passou por cima de onde estavam. Elas olharam para ele, como que sem nenhuma aparente emoção. Era como um silêncio repleto de sentimentos de cansaço. Não havia pensamentos ou imagens. Apenas o silêncio e a sensação.

Judá servira, por anos, a um mesmo homem rico que governava a cidade em que morava e guerreou contra outras cidades, pilhando, acumulando comida, riquezas, estuprando. Outrora um feroz comandante, trazia no corpo cinquenta e cinco cicatrizes de tiros, facadas e fraturas, até que um dia engasgou com uma maçã sozinho e após trinta e sete minutos fora socorrido por Belladonna, que ia trocar a roupa de cama de seus aposentos.

 Ficou sem oxigênio, ficou paralítico. Perdeu a coordenação motora e a serventia aos que jurou lealdade por tantos e tantos anos. Fora dispensado, sem qualquer reconhecimento.

- Eu trabalhava na para o rei e ele era soldado. Se machucou e o rei... O Judá demorou pra se recuperar e o rei tirou ele da guarda e disse pra ele casar e morar em outro lugar.

Judá escolheu a moça jovem e comedida cuja voz poucos na vassalagem do rei conheciam. “Ele me escolheu”, disse ela. “Como eu já tinha... Bom, eu havia me tornado mulher, já podia casar. O rei exigiu o direito dele...” e ficou em silêncio. “Ele matou a todos eles e a gente fugiu”. Ficou emudecida. Ela não parecia sentir-se dolorida pela violência sofrida. Parecia que ela já esperava que qualquer coisa parecida um dia pudesse lhe acontecer e parecia ter raiva de si mesma por deixado isso acontecer.

- Tenho ainda uma última rama da Artemísia. Vou preparar chá pra vocês.

- Não precisa. Vá descansar, menina. – Murmurou Hermínia.

- Ele nunca pôs a mão em mim. Sarah é filha do rei. – E olhou para qualquer lugar sem realmente ver alguma coisa.



Estavam exaustos e começando a sentir fome, pois agora regulavam no que comiam. Já deveriam ter chegado no local aonde encontrariam o Oráculo e pareciam estar perdidos. Todos agora olhavam para Frida de canto de olho, impacientes. Ela sabia que isso podia acontecer e por isso se sentia frustrada por não ter seguido sua intuição e abandonado o grupo quando estavam no templo, semanas antes.

- Estamos andando em círculos. – Reclamou Judá.

- Sim, - disse Frida, tentando conter a irritação. – Há três dias.

- Sabia disso? – indagou ele, se enfurecendo.

- Mas é claro que sei!

- Não posso perder tempo, Frida. – Hermínia parecia decepcionada com a amiga. Judá abriu a boca para dizer algo, mas suspirou, com raiva.

“Estamos no lugar certo,” Frida disse, deixando a irritação transpirar. – O problema é que vocês ficam pensando demais no caminho. Vocês estão atrapalhando.

- Você está tramando algo. Vocês estão! – vociferou Judá. Sarah começou a chorar.

Frida olhou para ele de maneira triunfal.

- Mas olha, vê se pode. – retrucou ela. – Você não vê pelo em ovo, vê barro por merda. E quer saber? É um grande monte de merda mole, fedida e desconfiada que eu vejo toda vez que olho pra você.

Ele olhou para ela em silêncio e de repente a raiva dele passou e surgiu nele uma serenidade sinistra. Ela era apenas mais uma mulher que fazia escândalos. Ela não era forte. Ela era como qualquer outra.

- Sei exatamente o tipo de monte de merda que eu vejo quando olho pra você.  – ele disse baixinho, acreditando no que falava. – Você é aquela pilha de estrume que nunca foi amada. Aquela que se tornou o que mais despreza: uma mulher sozinha e ressentida.

Por um instante Frida pensou em chorar, mas a raiva era maior. Ele era o homem que ela queria que ele fosse. Ela puxou sua faca e tentou ir pra cima dele, mas foi segurada por Hermínia. Ele ria alto, vencedor em sua competição inventada.

“Por favor, Judá, pare...”, murmurou Belladonna num tom incompreensível.

“Eu sabia que isso ia dar merda”, Hermínia pensou alto. – Olha, eu vou voltar duas semanas de andança e seguir meu caminho de volta.

- Isso! – gritou Frida. – Faça isso, pois a culpa também é sua se eu não consigo chegar no meu destino.

“Mal agradecida!” exclamou Hermínia, pela primeira vez, furiosa.

- Vamos, Belladonna! – gritou Judá, e pela primeira vez ela obedeceu a ele sem resistências. Ela olhou para as amigas. Era uma sensação amarga se despedir delas. Ela havia passado anos sem amizades, motivada por sentimentos que no fundo ela própria reprovava e a gravidez a tornou suscetível a aceitar ajudas e era como ir embora de casa, deixar aquelas duas mulheres para trás.

Judá parecia andar assombrosamente rápido, e Belladonna se esforçava para acompanhar. Mas ele parou. Frida e Hermínia olhavam para o casal com essa mesma sensação desconfortável de não entender o que sentiam por eles, ainda que percebendo que, o que quer que fosse, era grande. Ele virou e encarou Hermínia.

- O que tem nesse saco? – indagou ele.

- Teu cu! – gritaram Frida e Hermínia. Ele sacou um revólver e apontou para elas. Belladonna gritou e ele a empurrou. “Anda, o que tem nesse saco?”. Ele ia saber. E era agora.

Os quatro trocaram olhares entre si, silenciosos.

“Dona Hermínia...” murmurou Belladonna usando um tom carinhoso. “Quão longe a senhora está de sua casa?”.

Hermínia apertou seu saco de pano contra o corpo feito uma criança que abraça a um brinquedo. “Eu não sei”. Judá abaixa a arma. “Eu sou mesmo um grande idiota”, pensou ele. Ele pensa em pedir desculpas, mas estas palavras parecem não caber em sua boca, ou soassem inadequadas quando ditas com sua voz. Ele entrega a arma a Belladonna, que o guarda em suas vestes. Num tom completamente diferente, ele pergunta novamente.

“O que tem no saco?”, perguntou ele. Frida olha para Hermínia. Qual o sentido disso tudo? Ela parecia uma pessoa que conseguia ser aceita por todos mas, embora todos tivessem seus segredos, carregar o seu no braço e se achar no direito de não despertar desconfiança era irresponsável.

Hermínia olhou para eles constrangida. Sentiu raiva por um segundo, e passou da raiva à tristeza. Ela enfiou a mão no saco, tirou o que havia ali dentro e mostrou ao grupo.


CAPÍTULO 5


            Chovia um quase sereno, num dia quase nublado, e os adultos pareciam excitados por alguma coisa. Respostas rápidas, ansiosas. Pareciam irritados pois já há três dias Hermínia tentava brincar e pareciam incomodados que ela fosse criança. Seu pai lhe dera um beijo na testa e saiu para o trabalho, assim como sua mãe, minutos depois e Tomé estava em casa pois as aulas haviam sido canceladas por algum motivo.
         
            Tomé parecia andar de um lado para o outro quando aconteceu algo. Um som de sirene prolongado. Ele agarrou a irmãzinha e correu pela casa, e a levou para fora. Na rua, a pequena Hermínia não conseguia reconhecer os vizinhos pois todos corriam e ela correu por onde seu irmão a puxasse. O som parava e recomeçava.

Só foi interrompido quando o som de aviões ficou mais forte que a sirene. Ela nunca tinha visto pessoas agindo com tanto medo, começou a chorar. Tomé a agarrou e a fez subir em suas costas. Ele desceu pelas escadas do metrô e ali havia todas as pessoas do mundo. Ou parecia. Então ouviu uma explosão. E outra, e outra, e outra e mais outra. Chorava e ele a abraçava com o rostinho em seu peito.

As explosões pararam e as pessoas saíram. Hermínia viu que muitos não entraram e estavam feridos ou mortos. Voltaram até sua casa. Ela ainda estava ali. Ou uma parte dela. Os pais não chegavam. Um homem fardado que batia de porta em porta parou diante da casa deles e disse que Tomé teria de servir na guerra e que em três dias ele deveria partir.

Às nove da noite Tomé e Hermínia saíram para procurar notícias dos pais. À meia noite Tomé descobriu que estavam mortos. Às duas da manhã estavam famintos. As três da manhã estavam com medo. Às quatro Tomé pensou em fugir, mas para onde?

Às cinco da manhã Tomé estava na calçada da prefeitura e olhava para a irmã dormindo com a cabeça em sua perna e chorava em silêncio. Às cinco e dezessete Tomé pegou no sono.

Às cinco e trinta e dois, alguém roubou a boneca de Hermínia, que dormia. Às sete e trinta e Tomé acordou com o choro da irmã que perdeu o único brinquedo que tinha e às sete e trinta e dois ele se sentiu culpado por isto. Às dez da manhã ele voltou para as ruínas de sua casa. Às dez e vinte se sentiu culpado por descobrir que não eram mais crianças.

Às três da tarde ele se escondeu da irmã para chorar. Às seis da tarde ele sentia vergonha de si mesmo, e às sete, raiva dos pais.

Os pais não chegavam.

Não chegariam. Como dizer a ela?

Como dizer que foram esmagados, ou explodidos, ou que tanto faz como morreram, morreram como se não importassem, como um número entre outros para uma notícia na televisão parecer mais interessante. Ou simplesmente mais surpreendente.

Pensava que teria sido mais fácil não ter saído de casa a tempo. Quem sabe depois da morte não existe algo e a família poderia estar junto. Quem sabe ter tentado sobreviver não teria sido um erro pois, que vida lhes aguardava...?

Que maldição jogara à vida da pequena irmã por ter tentado sobreviver? Ele e todos os jovens rapazes teriam que servir na guerra. Ele nem sabia por que havia uma guerra, porquê lutavam, quem era bom, quem era mal, ou se havia algum bom no meio disso. Ele só queria voltar uma semana em sua vida e ficar preso nesta última semana feliz para sempre, mas não tinha pais, não tinha um lar, não tinha um passado, não tinha documentos.

Ela dormiu na perna do irmão uma segunda noite, com fome. No dia seguinte ele escreveu um bilhete para os pais e mostrou a ela, para que vissem e soubessem aonde iriam. Ele ia servir. Lá teria comida. Ele levou a pequena Hermínia, que em poucas horas estava num avião com ele. Um avião entre outros mil, feito um enxame de abelhas gigantes, sobrevoando cidades como se voassem em direção ao sol. Em direção a Golgota.

E a guerra aconteceu.



Hermínia segurava agora um crânio humano com a mão direita e olhava-o como se pudesse perceber o rosto que um dia houve sobre o objeto.

            Eu não podia deixar ele lá, mas eu era pequena, não conseguia carregar meu irmão inteiro”.

Silêncio. Eles não sabiam o que sentir além de choque.

“Por três dias eu fiquei do lado dele chorando esperando alguém aparecer, por três noites roguei sozinha pra algum milagre acontecer. Eu precisava levar ele pra casa, mas não tinha força pra carregar. Espantei urubu, rato, e tudo que tentava subir em cima dele. Separei ele, mas não podia deixar o resto dele ali. Enfiei a mão na terra e cavei. Cavei até cansar, dormi até acordar com algum bicho em cima de mim me cutucando. Tornei a cavar. Botei ele no buraco e empurrei a terra em cima. Dormi em cima da cova. Mas eu não sabia pra onde ir. Desisti. Começou a chover. Foi então que Virgem me apareceu.

Hermínia começou a chorar e disse “Eu prometo fazer você feliz, não neste mundo, mas no próximo”.

Olhou para uma direção qualquer, e sorriu. Podia sentir aquele amor que preenchia o vão que havia entre cada célula, entre cada átomo só ao pensar. O choro passou e veio uma felicidade amarga.

“A chuva ficou forte. Caia raio pra tudo que é lado, luz de relâmpago, estouro, estrondo. E ela olhando no meu olho. – e respirou profundamente –  “Deixa a água limpar o mundo, menina, deixa ela aliviar essa dor. Muita coisa ainda vai acontecer. É só a floresta pegando fogo pra reflorescer mais bonita”. Aí da luz da roupa dela começou o arco-íris.

“Ah, minha Nossa Senhora de Golgota, Rainha de Todas as Cores... Chovia em tudo, menos no meu caminho”.

Ela beijou a cabeça de Tomé com todo o cuidado do mundo, como se temesse machucá-lo por algum descuido.

- Foi lá, carregando meu irmão de volta pra casa, que comecei a andar, menina, dia após dia, após mês, após ano, trazendo meu irmão de volta pra os nossos antepassados. Cada vez pesando mais, meu pobre Tomé. – e enxugou as lágrimas com os antebraços. Olhou para eles, que não sabiam o que dizer.

Judá sentiu vergonha de força-la a revelar o que trazia. Ele vira dezenas, centenas de Hermínias perdidas pelo mundo e percebia agora, pela primeira vez, que algumas delas crescem.

- Tem carregado por toda a vida o peso da morte de seu irmão, Hermínia, mas isto é um apego seu.  – disse ele, no mais carinhoso que conseguiria ser com alguém. – Funerais são caprichos para nós, os vivos, os mortos querem apenas o silêncio. Não se importam com a terra úmida que absorve o cadáver ou animais carniceiros consumindo aquilo que é resto do que um dia foi vivo.

“Meu Deus”, pensou ele. “Tudo realmente é em vão”.

- Dizia o meu pai que quando meu avô era menino os tempos eram melhores.  Me percebi dizendo isso: que os tempos já foram melhores em meu passado e... E ao dizer isso concluo que o tempo jamais teria sido bom: nos referimos a tempos melhores quando, nos tempos em questão, éramos incapazes de enxergar a realidade. Éramos crianças, possuíamos um privilégio ou muitos, mas sempre, sempre houve o caos.

Sentiu vontade de chorar. “De onde”, “por quê?”. Estava cansado. Devia um pedido de desculpas às Hermínias que ele fez perderem a família, mas não conseguia se sentir culpado. Ele serviu, ele escolheu isso. Não se sentia culpado, se sentia condenado.

- Meu avô morreu em batalha, dizem, com o peito nú, num confronto contra um homem de três metros que lhe furou o coração com uma lança.  Anos depois, meu pai venceu uma batalha. Mas ferido, pereceu ao regressar. Eu não tive a mesma sorte, a guerra me aleijou e retornei a um mundo para o qual não sirvo pra coisa alguma, mas que também de nada me serve. A guerra é a única verdade do mundo. Tenho passado anos pensando sobre quem luta contra quem nesta guerra... Não se sabe quem luta, não se sabe quem morre. Tanto faz quem é o cadáver ali no chão, ou de quem é filho. Não sabemos o que defendem quando nos matam, nem do nosso propósito de matar de volta a gente entende. Certa vez perguntei ao rei contra quem lutamos e qual a razão. Silêncio. Foi o que ouvi. O deus da guerra é o patrono da morte. Pois atende ao desejo que o medo esconde: todos desejamos que o tormento se acabe. Vivemos aqui neste mundo onde gente que não importa morre todo dia. A guerra lava o chão dessa terra com sangue e faz, entre sofrimento e miséria, que sobre comida a quem fica. Sobretudo para aqueles a quem obedecemos.

Novamente silêncio. “É pra isso que morremos”, murmurou ele. Virou-se para Belladonna. - Para onde vamos? Para que lugar, se nada sabemos do mundo?

Frida se aproximou dele. Olhou no fundo dos olhos dele com uma expressão que não negava a rejeição, mas revelava o interesse em lhe demonstrar algum respeito. “É ela quem nos encontra. Precisamos estar perdidos, distraídos”.

            Belladonna deitou no canto aonde dormira na noite anterior.

            - Vamos descansar.

            Cada um se recolheu em sua própria solidão. E dormiram.


            Como estavam a dias andando em círculo, decidiram passar o resto do dia no mesmo lugar. Estavam exaustos de andar no calor, lidando com escassez de água e comida.

            No início da madrugada, as mulheres dormiam, Belladonna com Sarah em seu peito, e Judá lutava contra o sono, até que não aguentou apagou.

            Entre os escombros, surgiu uma sombra deslizante sob a disforme compleição do que parecia uma mulher e se encerrava nos pés que tocavam o chão. Era como se um coração no centro da Terra pulsasse uma energia que seus pés absorviam. Talvez essa comunicação entre aqueles pés e a terra mantivessem aquelas pessoas profundamente adormecidas. Pois a pessoa, quem quer que fosse, não tinha qualquer receio de fazer barulho.

Havia uma sincera hesitação, entretanto. Deveria convidar este grupo para seu covil? Algo lhe dizia que este encontro poderia culminar em uma grande tragédia. Mas havia outras linhas do tempo em aberto. Era possível tudo acabar bem. Mas o risco era real. Deveria pagar para ver?

Não atendê-los pelo medo dos riscos que sua intuição lhe diziam que ela correria seria uma maneira de desonrar a sua própria natureza. Isto era o que ela sabia fazer, lhe dava prazer e era sua maneira de ser útil. Ela tirou das vestes um pedaço grande de pão, jogou no chão uma pequena migalha. Olhou para a lua e sentiu a luz pálida refletindo em seus olhos. Está feito. Andou mais alguns metros e deixou uma segunda migalha.
Ela irá atende-los. Mas estará protegida.


CAPÍTULO 6


             - Tinha um conto de fadas... – começou Hermínia, enquanto seguiam pelas migalhas de pão.

            - Sim. – Judá respondeu como quem encerrasse uma conversa. – Estamos indo para a casa da bruxa.

            - Na verdade as migalhas eram jogadas para que os irmãos encontrassem o caminho de volta para casa. – respondeu Belladonna, reflexiva.

            “Hum”, ele balbuciou. Era claro que ele sentia muita curiosidade, mas essa gente costumava dizer coisas genéricas que cabiam a todas as pessoas e estava em um grupo com três mulheres, ou quatro, segundo Belladonna, e em breve, como temia, cinco. A mulher podia ser apenas uma charlatã. Mas e se não for charlatã? É claro que ele acredita nisso. Todo mundo que diz que isso é bobagem acredita secretamente. E se ela for de verdade? E se isso for algo demoníaco? Seu coração estava acelerado. Era como se acompanhasse a três aranhas que o direcionavam ao encontro de uma teia aonde teria suas proteínas dilaceradas por enzimas mortais e sua vida drenada lentamente. - Mas nós estamos indo para a casa de uma bruxa. – respondeu ele, deixando claro que isso era uma ameaça maior do que a própria guerra.
            
            - Estamos indo para a casa de um oráculo, uma advinha - ela corrigiu, num tom esperançoso. Era como se estivesse voltando para casa. As migalhas, afinal, não eram comidas por aves no conto de fadas? – alguém que fala com espíritos, ou simplesmente alguém que consegue ouvir ao próprio coração.

Estavam indo ao encontro de alguém que poderia ajuda-las a descobrir um caminho, entender a si mesmas. Estas migalhas lhe pareciam dar um norte para o regresso daquilo que a vida foi algum dia. Judá era curioso. Sentia-se como um boi direcionado para o abatedouro. Hermínia parecia acompanhar um grupo motivado a algo e Belladonna parecia buscar algo concreto. Frida estava em silêncio. Ela desejara pelos últimos anos este encontro e agora estava perto, sentia o estômago se revirar. Ela não tinha certeza se deveria ter vindo. O oráculo poderia revelar seu maior medo a si mesma.

Entre ruínas, havia uma casinha pequena. Uma casinha de sítio, pequena, simples. Paredes brancas de cal, muros de pouco menos de um metro, uma porta de madeira. Parecia algo como ver a uma casa de algum antepassado que não se vê há muitas décadas. Quando a caravana chegou na frente daquela casa, Frida sentia seu coração pulsar na garganta.

“Deixe-me entrar primeiro” ela disse. Judá não gostou disso, mas... Não gostava de nada relacionado a isso, então não esboçou reação. Frida entrou com passos estreitos, ombros arqueados. Havia uma cerca de pouco mais de um metro, com um pequeno portão de madeira entreaberto, e um jardim cheio de ervas. Bateu na porta, mas não teve resposta. Segurou na maçaneta, abriu e entrou.

A sala era escura pois apesar de o dia lá fora ter começado, havia cortinas nas janelas, quadrinhos com retratos de mulheres diferentes de partes diferentes do mundo. Muitas cadeiras de madeira com assentos e espaldar acolchoados. Sentada numa cadeira, bordando algo, estava uma mulher. Ela era idosa, vestia-se com roupas largas e repletas com símbolos geométricos. Frida sentiu medo de chegar perto, se aproximou muito tímida. “Será que se lembra de mim?”, pensou. Era menina quando esteve ali. Se aproximou mais e a mulher olhou para ela com olhar incógnito.

- Não está surpresa em me ver, dona Delfina? – perguntou forçando um ar de segurança embora estivesse mais desconfortável do que achava que estaria. A mulher parecia não escolher um olho para olhar. Encarava-a nos dois sem piscar.

- A única surpresa é que tenha demorado tanto. – disse com desdém. – Onde estão seus amigos?

Frida ficou em silêncio. Olhava pelos quadrinhos a procura do que dizer.

- Prefiro ser atendida sozinha, primeiro.

Delfina olhou para ela medindo-a, como se houvesse alguma malícia. Sorriu um pouco irônica.

- Segredos nos tem desgastado a alma, minha velha amiga. – e se levantou. – Vá busca-los. Acomode-os. Eu vou fazer um chá e preparar algo para comerem.

E saiu. Parecia agora detentora de um corpo miúdo com gestos pequenos e tímidos. Caminhou em direção à porta e convidou o grupo, que entrou muito timidamente. Judá olhava aquilo como se estivesse dentro do estômago de uma baleia. Sentia medo, se percebia frágil e dentro de um lugar aonde não cabia. E tinha de manter a percepção de que tinha tudo sob controle.

Belladonna olhava os retratos das mulheres com imensa curiosidade. Parou em uma. Era uma mulher negra que vestia um manto bordado com cristais e trazia um olhar de contentamento E segurava um bebê de pouco mais de um ano de idade. Judá se aproximou. “Era uma bruxa, essa mulher”, murmurou ele. Judá esperava que ela dissesse algo, mas ela permaneceu em silêncio olhando para a foto.

Hermínia observava os livros, baralhos de tarot, cristais, imagens de deuses e santos. Ia colocar a mão numa imensa bola de cristal, quando Frida a puxou para que se sentasse.

“Então finalmente chegaram!”, exclamou Delfina como se já os esperasse. Judá deu um riso de deboche ao ouvir isso. Então ela é apenas mais uma charlatã. Menos mal. Delfina percebeu o tom dele e o olhou de canto de olho. “O seu tá guardado”, pensou. – Venham, eu servi a mesa para receber a vocês. Aqui. Vem. Na cozinha.

Levantaram-se e foram até a cozinha. Havia uma mesa retangular com espaço para seis. Ela se sentou na ponta. Uma toalha inteira com símbolo da flor da vida e bem grande, no meio, com fios dourados, um imenso nó-sem-fim. Pratos e canecas para seis.

- Não precisava se incomodar, dona. – disse Hermínia, que foi a primeira a se sentar.

- Ora essa, não é nada. Preparei estes lanches com legumes frescos. Espero que gostem. – disse ela. Todos começaram a comer. – O chá é de flores.

Ela os serviu. Tudo tinha perfumes e sabores deliciosos.

- Eu gosto de cultivar flores, ervas, hortaliças. Ah, é minha alegria. Conseguem adivinhar o que tem no chá?

Frida prova.

- Margarida e melissa.

- Sim! – exclamou Delfina, que parecia feliz em receber tanta gente em sua casa. – Mas o teu favorito é laranja, gengibre e canela. – e olhou para Judá e Belladonna. Este fiz pensando no casal. Tem vivido meses de ansiedade. Só não sabem ainda se tem motivo pra isso.

- O que sabe sobre...

- Prove! – disse ela, quase como quem dá uma ordem, interrompendo Judá. Ele tomou um gole com gosto, fechou os olhos e tomou um segundo com ainda mais prazer. – Não é exatamente esta a sensação que mais sentia falta?

Ele ficou em silêncio. Era. Era o chá que sua avó lhe dava para dormir quando seu pai morreu. Este sabor vinha sempre junto de algum afeto.

- Eu pensei em fazer um chá de maçã, mas não sabia se poderia ofendê-lo com isso. Optei pela melissa. – ela disse com indiferença. Agora ele estava com medo. – Mas me digam... Ai, ai... Como está o mundo lá fora?

- A guerra continua, - Hermínia comentou como quem dá boas notícias. – Ninguém confia em ninguém, é como se o mundo não tivesse mudado. Mas tem chovido. Toda segunda-feira.

“Tem!” – exclamou Delfina, pensando alto. “Chove toda segunda-feira”.

- Ela acha que isso é algum sinal. – comentou Frida.

- E u é. – Delfina diz. – Bom, mas que indelicadeza a minha. Eu sou Delfina.

- Eu sou Hermínia, linda sua casa.

- Eu sou Judá e esta é...

- Sarah. – Delfina o interrompe, olhando para Belladonna com curiosidade.

- Nossa filha, - murmura Belladonna mostrando o bebê. – Eu sou Belladonna.

“Seu nome não é Belladonna”, ela murmura, olhando para o casal com um ar de desconfiança, mas então ri, quebrando o gelo. – Também não me chamo Delfina. Beba. Beba, Hermínia.

Um leve constrangimento tomou o grupo. Judá ficou confuso. Belladonna não se chama Belladonna? Que raio de história é essa?

- E a senhora atende como, dona Delfina? – pergunta Hermínia? – A senhora lê mão, carta, búzios... Faz mapa astral...

Delfina parecia ter gostado dessa pergunta, pois falava de maneira empolada, como se tivesse ensaiado a resposta. “Eu leio mãos, borra de café, leio as estrelas e até a sola do seu pé. Vejo seus olhos e coração, leio a alma e toda a sua emoção.”

“Percebo os gestos, a respiração, vejo o presente, sinto o passado, e compreendo o futuro. Verdades e mentiras, minha habilidade é perceber o que o cliente é capaz de entender, ou precisa saber. Não necessariamente dar o que ele deseja receber.

- Minha mãe costumava ter sonhos premonitórios. – Belladonna disse.

- Nunca me contou... – murmurou Judá.

“Ah”, Frida riu.

- Nem eu diria. – comentou Hermínia. – Qualquer coisa diferente que uma pessoa tenha, ou seja, as pessoas sentem raiva por não ter ou não entender.

- E afinal, - Delfina dizia como estivessem entre comadres. – conta pra gente da sua mãe. Onde está, o que aconteceu com ela...

Belladonna olhou para a caneca e tomou mais um pouco daquele perfumado chá. Seu coração palpitava. Ela nunca quis dizer sobre sua mãe a Judá, nem a ninguém. Mas afinal. Ela estava na casa de uma mulher. Uma vidente, com a companhia de outras duas mulheres adultas, e sua pequena filha. Ela era mulher e enalteceria a mulher que sua mãe fora um dia.

“Ela era muito querida pelas pessoas, mas era muito bonita, e viúva. E muitos homens ricos a cobiçavam. Ela era curandeira e uma mulher, uma a quem ela havia atendido, disse que ela era bruxa, pois sabia que o marido dela vivia atrás de minha mãe. Ela foi raptada.

E tomou mais chá. Os músculos ao redor dos olhos tremiam, pareciam eles próprios confusos sobre manifestarem raiva ou vontade de chorar. Sua voz era hesitante. Ela nunca falara uma única palavra sobre sua mãe em anos. Nem a si mesma, pois sabia que paredes costumavam ter ouvidos. Sentia a agonia de por anos não transformar em voz, em palavra o que se passava na alma e parecia que isso endurecera o músculo do coração.

“Disseram que ela fazia magia negra pois era uma curandeira, benzia as pessoas. O povo não tinha remédio nem médicos, ela usava o conhecimento, a habilidade que Deus tinha dado para ela. Mas foi apedrejada até chegar na prisão e queimada viva.”

Parecia que o fogo ardia dentro de seu cérebro pois o olhar dela parecia refletir aquelas chamas ainda hoje.

“Eu pus fogo na igreja, na vila. Enquanto o povo celebrava o fogo no corpo dela, toda a cidade começou a arder junto”.

Hermínia pareceu horrorizada. Ela olhava para a história com pena da menina até tudo se converter no mais completo horror. Ela fora uma criança incendiária. O que pensar?

- Eis um desfecho apoteótico! – exclamou Delfina. Parecia um pouco chocada com a história. – Qualquer gripe, qualquer coisa que acontecer nessa cidade, atribuirão a sua mãe. O povo será assombrado por gerações. Não sei se isso é bom para ela, mas...

- Honrar pai e mãe! – exclamou Frida. – Fez o que tinha que fazer.

Judá estava mudo. Em choque. Horrorizado. Ele realmente corria perigo. A mãe de Belladonna era a mulher contemplada no retrato, instantes atrás. E ele estava lá quando aconteceu. Será que Belladonna começou a servir o rei para em algum momento encontrar uma oportunidade vingança? Seu coração parecia pulsar na garganta. Ele matou a todos por ela.

“Eu... quero mais... Chá”, murmurou com a voz desafinando, sem fôlego.

- Sirva-se, querido. – disse Delfina, muito entretida com a conversa. – Fique à vontade. – E então ela própria tomou um pouco mais de chá. – Vejam só: me lembrei de uma história ótima!

Ela deu uma abocanhada em um dos lanchinhos de legumes, mastigou. Limpou a boca com um guardanapo, e começou.

“Não sei se é verdade. Da verdade, pouco, ou nada, se sabe. Tinha uma mulher que era louca. Que ficou louca, que teria ficado, sei lá. Diziam que o nome era Valquíria. Era professora de geografia, funcionária pública. Um dia ela dava aula, explicava qualquer coisa relacionada ao Canal da Mancha. Quando, de repente, ela parou de falar. Parou de piscar. Não comia, não dormia. Assim por sete dias. Quando acordou, chamava-se Helene, nascida dois séculos depois de Valquíria. Dizia que as pessoas precisavam aprender a pedir desculpas e também a perdoar ou haveria uma grande guerra”.

Tomou mais um gole de chá.

- Lhe medicaram e trancaram num quarto branco. – terminou ela. Virou-se para Belladonna. – Ainda se lembra de algum sonho de sua mãe?

- Sim... – murmurou ela. Parecia triste por lembrar de algo especial que lhe parecia remotamente distante. – De todos que ela me disse. Dos ruins e dos bons. Mais destes. Eram poucos e não duravam muito. Feito a luz frágil de um vagalume que viaja por um bosque cujo solo a luz da lua não alcança. Ao fim, o vagalume terminava na teia de alguma aranha traiçoeira.

- A aranha também tem fome. – Delfina disse num tom carinhoso.

Hermínia achou isso bonito. Nunca tinha pensado na natureza do pequeno inseto, tido como peçonhento, medonho.

“Ela conhece a própria fraqueza, por isso a armadilha. Ela se pendura, qualquer coisa maior que ela a devora. Ela cai da teia, e pode ser vencida até por uma formiga. Eis a teia, onde governa feito uma rainha solitária. Todos nós já interceptamos algum portador de luz que, em contato com nossa solidão, se desacreditam, desistem e se rendem. Todos nós já fomos os predadores da esperança de alguém em ser algo melhor.

Judá se levanta, buscando um tom formal.

- Agradeço pelo chá, - disse ele. - mas não viemos aqui para conversar sobre fábulas com aranhas e vagalumes, ou viagens no tempo nem pessoas esquizofrênicas. Como funciona o seu trabalho?

As quatro mulheres olharam para ele com um olhar de paisagem. Como quem reprova uma atitude e parece escolher não alimentar o comportamento. Ou como se simplesmente não entendessem a razão de sua impaciência.

- Bom, meu trabalho tem um preço. O mais caro que cada um puder pagar. – disse ela, estalando os dedos e olhando para Judá como se o medisse para já começar o atendimento. – Aí vai de cada um pensar no quando quer saber sobre o que desejam saber. – E olhou para Hermínia. – Você. Não me diga, pense: o que me perguntaria? – e virou-se para Belladonna. – E você?

- Qual o seu preço? – indagou a moça.

- Pra você? – sorriu Delfina, com um olhar um pouco calculista.

- Tenho algum ouro – murmurou Judá, inseguro. – Mas precisamos dele.

Delfina olhou para ele e sorriu como se o tranquilizasse.

- Não se preocupe, meu querido. Não vai perder um único grama do seu tesouro. Eu quero... – e pensou um pouco. Olhou para Belladonna, olhou para Sarah. – Eu quero ela.

- Ah, sua filha da puta! Vamos, Belladonna! Venha. Vamos embora.

Ela se levanta. Eles vão para a sala e caminham em direção à saída. Judá abre a porta da rua.

- Estão à sua procura e vão encontra-los em trinta e três dias. – Delfina comenta, com alguma indiferença. – Quando encontrarem, esfolarão à vocês dois com vida e matarão o bebê. Tomarão o ouro e um... Um anel... É isso? Não! Um relógio de bolso.

Eles ficam parados. Frida e Hermínia se levantam e vão para a sala, ao encontro dos dois mas não se aproximam. Judá permanece de costas. Sente vontade de chorar. Sente muita vontade de chorar. Isto é humilhante. Ela realmente pode ajudar. Mas ele não pode dar a filha deles. Filho. É um menino. Menino dele. Não é dele. É do rei, é do homem horrível que ele matou. Não. É seu filho. Sua criança. Ele cuidou de Belladonna, se expôs a riscos. E para sobreviver teria de dar o bebê?

- Eu te entrego todo o ouro. – ele disse, ainda de costas. Frida e Hermínia trocaram olhares e permaneciam imóveis. Ele estava exposto, frágil. Sentiam pena da maneira como a voz dele estava. – Tenho oitenta moedas de ouro, dá pra ser tão rica quando jamais pensou ser.

Delfina pareceu considerar a oferta.

- Oitenta é realmente muita coisa. Mas este ouro é maldito. Não. Prefiro o bebê.

- Eu não posso simplesmente... – gemeu Belladonna.

Não! – exclamou Frida. – Não pode. Mil vezes não.

- A filha da violência gerada no ventre da inocência. Eu a quero.

- E se eu não a entregar? – suplicou Belladonna.

“Seu choro será abafado pelos gritos que vocês darão ao arrancarem do corpo suas peles”.

- Pois que assim seja. – vociferou Judá, que escancarou a porta.

- Eu lhe dei a vida e você nos deu esperança... – chorou Belladonna, beijando o bebê e entregando-o à Delfina.

- Belladonna! – Judá rosnou traído.

- Não faça isso! – suplicou Frida.

- O quê, pagar pelo meu trabalho? – retrucou Delfina, parecendo profundamente ofendida que Frida se metesse em suas coisas. “É apenas um bebê”, murmurou a mulher. – Eles querem sobreviver, sua idiota. Cale-se. Já cumpriu com seu papel no destino deles. Agora cale a boca, sente e espere a sua vez.

Delfina caminhou até uma cadeira de balanço e se sentou. Judá fechou a porta, mas ainda estava de costas. “Migrem para o oeste”, disse ela. Ele se virou e caminhou até ela.

- Mas é do oeste que viemos.

- Se sente receio, vá pelo sudoeste. – E ela olhou para o bebê com carinho. – Passem pela vila onde morreu Josefa. Há uma montanha com uma estrada. Tudo o que vem depois dessa estrada é seguro. Lá já chegou a notícia de que a guerra acabou. – e olhou para o grupo. Estavam em choque. – Sim, a guerra já acabou. O que houve?

Josefa era a mãe de Belladonna. Isto era uma informação desconfortável o bastante para ser sucedida pelo fato de que segundo ela, a guerra já tinha acabado, as pessoas apenas não sabiam disso e continuavam lutando e matando por pura ignorância.

- Delfina... – Frida falou num tom falso e simpático. – Devolva o bebê.

Judá olhou para Frida e depois para Delfina. Pensava em tomar o bebê à força. Mas tinha medo. Essas bruxas eram perigosas quando desafiadas.

“Não há o que devolver pois me foi dada e eu aceitei. Posso lhe dar afeto, segurança e conforto, ou usar em um ensopado, se quiser”, e enfureceu-se - Não deseje a eles a sua miséria.

- Se te capturarem sabe que a vida de todos está comprometida e que Sarah... – e olhou dentro dos olhos dele – digamos assim... Não terá destino algum, nem tuas mortes serão de honra. Tens seguido às estrelas como lhe foi ensinado, sob as mesmas lições que aqueles que te buscam. Fora treinado para ser previsível entre os seus.

Ela estava certa, pensou Judá. Ele sempre renegou esses conhecimentos pois não os tinha, concomitantemente, não os compreendia. Mas ela estava certa. De que valia correr o risco de ser interceptado, se Belladonna parecia ser uma pessoa muito mais perigosa do que ele, e nem ele nem ela pareciam ter qualquer valor moral para oferecer ao bebê. À Sarah, que é um menino.

Delfina olhou para Hermínia, que se encolheu com medo do que a mulher pudesse lhe dizer.

- Mas você... Segue perdida.

- É... – Hermínia disse num muxoxo desolado.

- Quer minha ajuda?

- Não posso te dar o que quer...

- Pode... – disse a mulher com serenidade.

- Que uso lhe teria?

- Nenhum.

- Então por qu...

- É um sacrifício, menina. A vida precisa deles pra andar. É um orgulho, um apego, um passado, uma ideia de futuro...

- E o que vai fazer? – perguntou Hermínia. Ela já tinha entendido. Delfina iria escolher a cabeça de Tomé como pagamento. Que uso lhe teria? Nenhum. Hermínia entendeu. Talvez a única pessoa ali. Não se tratava do bebê, ou da cabeça. Mas de deixar algo para trás. Algo importante. Uma contrapartida dolorosa para se provar digna de... De paz.

- Chega dessa história! – exclamou Frida. – Você não vai tomar nada de ninguém. Devolva o bebê. Você subverte a realidade. É cruel. Você...

- Está perdoada, querida.

            - O quê?

            - É... – sorriu Delfina. – Eu te perdoo.

            - Do que ela está falando? – indagou Judá.

            - Sua dívida, Frida. Está perdoada. Mas claro que pode fazer outra.

            Frida ficou boquiaberta, gaguejando, tentando encontrar o que dizer, mas confusa. Confusa sobre como lidar com isso, pois ela sabia exatamente do que Delfina estava falando. “Maldita”, pensou.

            “Não te devo nada”, divagou de maneira insensata e desafinada. – Te deixei queijos e todos os produtos que tinha para vender. Não te deixei de mãos abanando.

            - Bom, só que eu nunca quis queijos e derivados como pagamento pelos meus serviços, Frida. – ela usava um tom de voz simpático, embora o olhar fosse fulminante. Ela se sentiu desonrada e desrespeitada por ter sido ludibriada por Frida e sua mãe e desonrar sua habilidade é algo que ela não poderia admitir jamais. - Eu os aceitei como  presentes. O preço foram as vacas. Eu te pedi as tuas vacas. As duas.

“Era tudo o que possuíamos”.

- Ah, sim, quando vieram, mas já no caminho de volta aquele homem te conheceu e tua sorte mudou. Não me dar as vacas foi um ato de avareza.

- Você não teve mérito nenhum com meu casamento.

- Méritos não estão em questão, minha querida. Tudo o que possuíam de valor eram sua casa e duas vacas, você e sua mãe. – e então ficou hesitante ao perceber que pareceu insultar a mulher e sua mãe. – Bem, não vocês. Ai. Vocês duas tinham duas vacas e eu as quis como paga por minha revelação e eu disse o preço antes do atendimento.

Frida sabia que tinha sido vaidosa e avarenta. Sua mãe falava que deveriam pagar, mas ela nunca fez questão.

“Era tudo que tínhamos”, murmurou, era a única coisa que conseguia dizer.

            Era o preço, e me prometeram trazê-las. Pois vejam, ela tinha catorze anos e aquele viúvo quarenta e sete quando as viu na estrada e se apaixonou por ela. Cortejou-a, presenteou-lhas com um boi saudável, forte, viríl, um bezerro, um casal de cabritos, galinhas, um punhado maior de terras, um mês depois aquelas duas vacas já não significavam nada pra vocês.

            Judá sentou. Aquilo parecia interessante. Frida observou o movimento dele pelo olhar periférico e suplicou a Delfina, como quem implorasse para que ela parasse de falar. “Era tudo o que meu pai havia nos deixado, Delfina”.

            - Era o preço, poderiam ter dito não, como Judá, pago, como... Belladonna, ou escolhido pensar um pouco mais, como Hermínia. Enfim, não precisavam mais delas. Mas ainda assim não vieram me pagar. Bem, o homem se casou com você, mas partiu para a guerra, deixou o filho pequeno para cuidar, mas não te emprenhou. Que mais...

            - Chega.
        
            “Tinha agora, o quê, mil vacas, plantação de uvas, arroz? Que seja. Ouro. Não pagou, ainda assim. Esqueceu de mim? Claro que não. A gente sempre sabe das nossas dívidas. Oito, dez anos de guerra e o homem não voltou, mas o filho dele era um rapaz. Bonito, gentil.

- Você quer me humilhar por conta de uma divida que, à época, paguei como pude? Pois não lhe deixei com as mãos abanando. Não aceito que fale de minha vida.

Delfina serrou os olhos. – Não estou humilhando você. E a sua vida e se você se envergonha dela, isso é um problema seu. Afinal é pra falar dela que me procurou, não é, Frida?

Os outros três olhavam de uma para outra, cada um lidando com isso de uma maneira. Belladonna reconhecia em Frida um pouco daquelas mulheres de vida mansa que se queixavam de dificuldades na vida enquanto alguém lhe pintava as unhas ou penteava os cabelos. Mas a conheceu na andança, na busca por comida. Sentia um pouco de rejeição pelo passado de madame, mas sabia que essa mulher lhe queria bem, então, deveria ser leal a ela.

Hermínia não sentia nada por Frida. Olhava, como quem assiste a um filme. Ela pensava mais era em si mesma enquanto via a todo esse embate.

- Que direito acha que tem de falar de minha vida como se você própria fosse inocente na sua?

- Eu não minto, nem roubo... – retrucou Delfina

Mas fere. – Frida respirou fundo. Se sentia humilhada pois veio para saber o que deu errado e tudo o que essa mulher sabia era humilhá-la como se tivesse culpa pelos privilégios que teve. – Você vive da vida dos outros, olha pro mundo pelos olhos dos outros. Não constrói nada, nem edifica.

- É uma escolha minha.

- Que não te torna melhor. – gritou, beirando a histeria. - Só não tem crimes nas mãos por não sair de casa. De todos, você seria a pior, pois é sádica.

Delfina pareceu se ofender por um momento, mas mudou para uma expressão de ternura.

- Agora veja, Frida, pense num espelho. – e parou. Ergueu a palma direita como se expusesse um espelho aonde Frida pudesse ver a si mesma – O que veria neste momento? – Frida olhou a mão da mulher, deu um soluço, parecia entrar em colapso e prestes a começar a chorar. Mas conteve com muito esforço. - É isso, filha. Continue.

“Nós nos apaixonamos”, ela tentou esconder o choro. “Eu e meu enteado”.

- Eu não preciso ouvir falar da vida desavergonhada desta mulher. – Juda riu, se levantando.

- Podemos falar da sua, se quiser! – Delfina respondeu, ameaçando-o. Ele parou de rir. Ela voltou sua atenção à Frida. – Frida engravidou do rapaz. Quando lhe disse, ele se matou.

Ela chorou com dor, e depois emudeceu. Pareceu catatônica. “Você me disse que eu seria feliz no amor”.

- Não... – a mulher murmurou, olhando com amor para Frida. – Eu lhe disse que viveria um grande amor. – E parou. Respirou mais uma vez. – Jamais lhe disse que seria feliz. Mas em momentos, foi. A mais feliz de todas.

Hermínia chorou silenciosa. Belladonna parecia triste. Ela queria ter vivido de algum modo essa vida de mulher, enquanto mulher. Mas ela teve que sobreviver buscando as coisas da vida de homem. Apesar do sofrimento, a vida de Frida era bonita, afinal. Tinha sonhos, tinha amor. Ela não conseguia sequer entender o que isso representava e sofrer por ódio parecia algo ainda mais vazio que o coração partido de uma mulher tola.

- Isaac nasceu. – Frida prosseguiu – Meu marido voltou, cego, ferido, cuidei por quatro anos. Apadrinhou o neto, sem saber que era meu filho. No inverno mais frio que conheci ele morreu. Isaac sobreviveu ao inverno, primavera, mas veio o verão.

“Por quarenta dias a chuva caiu. Meu menino foi levado pela enxurrada, junto com todas as plantações, animais. A chuva parou e eu estava faminta e desejava morrer, mas parecia-me que nenhuma doença era capaz de furar meu couro.

Delfina balançou a cadeira. Olhava para Frida com pena. Como quem pensa sobre algo precioso desperdiçado.

- Acho que se tivesse pago as minhas vacas nada disso teria acontecido. Eram minhas, pois tinha me dado. É como se me tivesse roubado.

Frida se sentiu ultrajada, pois Delfina parecia realmente acreditar no que dizia, e o que dizia a fazia Frida, de algum modo, culpada pela própria desgraça.

- Eu perdi meu passado, meu presente, meu futuro. Perdi um homem que me acolheu, o homem que amei, perdi meu filho, perdi meu sustento e fala dessas merdas de vaca?

- Falo, - e levanta da cadeira de balanço e seguiu em direção a seu quarto – porquê, naquele mesmo verão a enxurrada trouxe, - e voltou carregando alguma coisa de pano na mão – olha só: isso aqui, até a minha porta.

Ela joga a coisa na direção de Frida mas cai no chão da sala, no meio do caminho. Frida  levanta e anda até o centro e agacha para, de joelhos, pegar o pano, abre e vê um suéter de tricô infantil.

- Não é o ponto de tricô da sua mãe? Eu lembro que ela vestia um colete assim.

Os olhos de Frida explodem vermelhos de ódio e tristeza.

“Jogou praga no meu filho?” gritou transtornada.

- Jogou, claro que jogou. – Debochou Judá de maneira ressentida. – Até eu jogaria. Você arruinou a vida de todo mundo. Você é uma egoísta de merda, mas, afinal, que mulher não é?

Belladonna levanta da cadeira.

- O que quer dizer com isso?

- Que eu preferiria morrer esfolado sabendo que tentei até o fim protege-las, a ver você dar... Assim... O filho que não pus no seu ventre mas que aceitei como meu!

Belladonna sentiu raiva e vergonha. Será que ele era tão burro ao ponto de realmente acreditar que ela realmente havia dado sua filha à Delfina?

- Olha, seu tosco, - começou Frida. – Taí uma coisa que eu concordo com você. Não me arrependo de não ter dado minhas vacas pra essa maldita.

- Tivesse dado, hoje lhe devolveria algum filhote para recomeçar a sua vida.

Desgraçada, ela e seus jogos, lançando suposíveis circunstacialidades para confundir.

- Não... você...

- Claro que ela está mentindo. – Judá gritou.

- Nunca saberá! – diz Delfina apontando o dedo na direção dele.

- Chega! – gritou Belladonna.

- Judá conheceu a sua mãe.

Opa, escapou. Assim, como que por acidente, como que sem intenção, como que sem ser importante, Delfina fez com que a gritaria cessasse. Belladonna olhou para ela com cara de nojo. E virou-se para Judá, erguendo uma sobrancelha. E parecia sobrenaturalmente calma.

- É verdade isso? Conheceu minha mãe?

            Judá não estava nem um pouco surpreso. Então agora ele era o vilão da conversa? Então essas mulheres realmente lhe deram esse papel, e ele resolveu aceitar.

            - Joséfa? Sim, conheci, fui eu quem atirou a flecha de misericórdia no coração dela depois de me irritar de tanto ouvir a criatura gritar feito um porco guinchando no abatedouro.

            Belladonna sacou o revólver do bolso e deu um tiro no peito dele, que caiu no chão, em choque. Ela gritou horrorizada. Hermínia estendeu a mão pedindo a arma. Delfina ficou horrorizada.

            - Eu não... – Judá tentou dizer algo, mas o choque ao ver o próprio sangue e o sentimento de traição jamais permitiram que terminasse de dizer. Caiu de joelhos e despencou, morto.

            - O que eu fiz? Deus!

            - Você não enterrou a sua mãe. – murmurou Delfina

            - Você matou um assassino. – desdenhou Frida.

            - E se tornou uma. – Delfina disse, decepcionada.

            - Ele cuidou de mim.

            - Cuidou. Amava. Vingou você quando te abusaram. Assumiu a filha de um estupro. E por afronta lhe disse uma mentira que a fez lhe matar. Ele não matou sua mãe.
            
            Silêncio. Belladonna tremia. Frida estava em choque e Hermínia sentia medo. Medo de todas elas. Agarrava o saco com a cabeça de Tomé como se ela pudesse lhe oferecer qualquer segurança em meio a isso.
           
            - Você sabia que eu ia fazer isso.

- Não... – respondeu, murmurando. Parecia sincera, o que a tornava uma figura ainda mais bizarra e odiável. – Eu sabia que você podia fazer isso. Mas realmente achei que o perdoaria. Sua mãe morreu a tanto tempo, ele já quase morreu por você. Mais de uma vez. Defender uma honra do passado a fez abrir mão do futuro. Uma pena. Acho que cometi o erro de vê-la pelos olhos dele.

Belladonna aponta a arma para Delfina, vira o rosto, fecha os olhos, puxa o gatilho e chora. O sangue respinga no bebê, que chora angustiante. Frida segura o bebê e olha para Belladonna transtornada.

- Ó meu Deus, olha o que você vez...

- Nós temos o ouro e sabemos para onde ir. – Belladonna respondeu de maneira prática, como se estivesse sob efeito de algum medicamento anestésico. – O que houve?

- Belladonna, Delfina nos serve chá envenenado e só depois do atendimento que ela nos dá o antidoto. É como ele se protege... Disso...

Silêncio.

- Não nos disse nada disso... – murmurou Belladonna.

- Eu não disse pois não lembrei. Jamais pensaria que...

Silêncio.

Hermínia estava triste. Olhava para as duas pessoas mortas no chão. Olhava para as duas discutindo o que fazer com as mortes que causaram, e tentava pensar no que seria de si. Mas não conseguia formar qualquer pensamento.

- Vamos embora. Será que tem mais comida? – Belladonna começou a recolher suas coisas.

- Não! Não pegue nada. – disse Frida, culpada. - Pegue o ouro de Judá e só. Vamos embora. – Vamos, Hermínia!

Belladonna pega o retrato na parede. As duas saem. Hermínia fica. Move-se como que em câmera lenta. Como se despertasse devagar de um estado de catatonia.

Quanto desespero, quanto apego. Ela não queria virar esse ódio, nem esta solidão. Ela queria paz. A paz de ser criança, a paz de estar em sua casa, com sua família. A paz de uma vida que acabou e que passou décadas negando a grande verdade: Ela estava sozinha.

Ela não iria retomar a vida não vivida.

Hermínia tirou a cabeça de Tomé do saco de juta e olhou para as órbitas sombrias, no fundo das trevas de um dia houvera a luz dos olhos de seu amado irmão. Seu único verdadeiro amigo. Sua respiração ficou ofegante. Ela queria chorar. Queria pedir perdão por não ter feito algo que sequer sabia o que era. Queria voltar no tempo. Ela não queria enterrá-lo, queria por algum milagre revivê-lo. Reviver a si mesma.

Ela não era Frida para não pagar as vacas nem Belladonna, incapaz do perdão, ou Judá, que precisava confrontar qualquer um que o questionasse. Levantou do sofá aonde estava.

“Meu querido Tomé”. Beijou os dentes do crânio, e lavou-o com lágrimas silenciosas. Abraça-o e caminha entre os corpos no chão. Ajoelha-se e fecha aos olhos de ambos Delfina e Judá.

Ergue o crânio e o contempla. Sorri. Acaricia como quem toca o rosto de uma criança e o coloca, com todo cuidado, ao lado de Delfina.

Fecha os olhos. Levanta-se e sai sem olhar para trás.
  


CAPÍTULO 7 


            Parecia um milagre que envenenadas, caminhassem em silêncio, concentradas, focadas em alcançar algum destino desconhecido e já tivessem percorrido um percurso são longo. Como se por uma vaga esperança de alcançar o objetivo final antes que o veneno finalmente as subjugasse. Era um desespero digno de um Moisés consciente do próprio pecado. Chegaria a tempo? Teriam dias suficientes para, ao menos, vislumbrar o futuro?
O caminho que antes levara dias e mais dias em voltas a esmo fora superado em poucas horas. Elas olhavam com melancolia. Pela primeira vez em anos elas realmente observavam as ruínas e percebiam que houve vida. Viam a si mesmas como ruínas vivas de algo que pouco a pouco se esfarelava.

            Pareciam exaustas, exceto por... Exceto por Hermínia. Elas pararam diante do que poucas semanas antes era o templo que as recebera com tanto afeto, mas que com tanto apego, ruiu.

            - Eu voltei pra buscar Tomé... – ela pensou alto. – E quando encontrei ele, ali no canto, esquecido, pensei que... Ah. Não sei o que eu pensei. Eu pensei que não deveria ter deixado vocês para trás. Poderíamos ter nos separado para sempre e eu estaria com ele, ali, embaixo de tudo isso que caiu. Mas eu fiquei pensando na menina grávida, no moço que não conseguia correr e que precisaria de ajuda no meio da confusão, e acho que a minha Virgem de Golgota me deu mais uma chance. Eu acho que foi a última que ela ia dar, se eu não escolhesse...

            Frida suspirou de maneira doída.

            - Delfina te ajudou, afinal.

            Belladonna baixou a cabeça. “Vamos?”, murmurou para as amigas, como se... Não se sabia o que sentia. Queria ter feito tudo diferente. Mas qual o primeiro erro? Sentia as juntas doerem e a saliva parecia mais grossa a cada instante.

O céu ganhou um tom mais claro.

            - Vamos tentar nos esconder. – disse Frida.

            - Pra quê? – Herminia riu de nervoso. Sentia alguma excitação e parecia estranhamente motivada. – Venham, segurem no meu braço, vamos andar mais rápido e passar pela parte mais perigosa antes do dia nascer.

            E aceleraram o passo.

            - Sabe que ela tava certa? – Frida tossiu. Sentiu um pouco de tontura, mas continuou – Eu realmente não dei as vacas porque eu não quis. Mamãe dizia para eu levar e eu fiz pouco caso.

            - Ela jogou praga em seu filho. – desdenhou Belladonna.

            - Não jogou. – Frida respirou fundo. – Ela não jogou. O que ela quis dizer foi que eu deixei fios soltos, portas apertas, acordos desonrados, prometi me empenhar em coisas que jamais fiz, porquê não quis. Ou não aguentei. Mas vivia de cabeça erguida e quando alguém agia comigo do mesmo modo, eu me punha como vítima. É mais fácil ver agora que estou carregando apenas a roupa do corpo e meu passado é só uma história que será esquecida tão logo eu adormeça.

            Belladonna parecia mergulhada em um sentimento de negação que era seu último recurso para sobreviver. Ela sabia que tinha feito a tudo errado e que merecia estar envenenada, mas sabia que pensar sobre isso a faria pensar que sua imprudência seria a causa da morte de Frida e Hermínia. Ao mesmo tempo negar isso era ser desleal. Mas ela não sabia como sentir amor, afeto, como dar, como receber.

            - Ontem, antes da gente acordar e seguir as migalhas de pão...

            Hermínia começou a contar como quem confidencia algo especial. Um segredo precioso, algo que deixava claro que ela confiava nas irmãs que lhe faziam companhia.

            “Eu sonhei que estava andando pelas ruínas e via um bosque adiante. As nuvens eram assim como essas no céu: redondas. Eu carregava algo no braço, mas não era Tomé. E eu parecia, de algum jeito que eu não conhecia, feliz.

            As duas olharam para ela e pararam de andar.

            - E a Senhora de Todas as Cores estava comigo. Ela abria aquele manto bonito e vinha aquela luz quentinha. – e puxou as amigas para que retomassem a caminhada. – Ah. Chovia. E a luz dela me secava. Eu fiquei pensando nela enquanto tudo acontecia. Acho que ela estava ali com a gente.

            Sarah começou a chorar. Estava suja. Belladonna a ofereceu a Frida que abre os braços para pegá-la, mas hesita.

            Hermínia olha no fundo dos olhos de Frida e sorri.

            - Isso, menina, faz você. Só essa vez. A gente te ajuda.

            Entram numa ruína qualquer. Belladonna coloca sua capa no chão e deita Sarah sobre ela e a despe. Ela olha para o pequeno pênis no bebê, dá um soluço e chora. Levanta o bebê cagado e beija sua barriga, e o lava com suas lágrimas.

            - Ah, Judá, me perdoe.

            Hermínia estende o braço para abraçar a moça, mas Frida a detém. Belladonna chora feito um bebê, e ri. Ela limpa o bebê com um carinho que jamais lhe dera antes. Que destino este bebê teria? Ela iria morrer e este inocente morreria de fome, sede, nos seus braços. “Seu nome é Judá”, ela diz.

            - E então, Belladonna... – Hermínia diz baixinho, com um pequeno sorriso nos lábios e os olhos brilhando cheio de lágrimas.

            - Meu nome é Sarah.

            Ela olha para o bebê, e o aperta contra o colo, apaixonada pela felicidade momentânea que a tomou.

            - Fez bem em deixar Tomé para trás. – Disse Sarah com olhos de criança. Ouvem a um avião, uma explosão. Não se deram conta de que já era dia. – A Virgem que aparece para você...

            - Que tem ela?

            Já lhe aconteceu algum mal na sua andança? – Sarah perguntou. Assustam-se com tiros de metralhadora, mas continuam exatamente onde estão.

            Hermínia ficou em silêncio.

            - Nunca lhe agrediram? – indagou Frida. Hermínia fez que não com a cabeça. – Fome? Sede?

            - Sofrer, acho que só uma vez, quando conheci a um moço que me pediu para ficar ali com ele. Mas não foi maldade de ninguém. Só o destino, mesmo. Porque essa conversa agora? Temos que nos esconder.

            Sarah riu.

            - Nós vamos morrer, Hermínia. – disse ela, sinceramente aliviada. – Não vou correr pra lugar nenhum. Mas você...

            Frida tomou um gole de sua água e tirou as bolsas do braço.

            - Não te ouvi tossir nem engasgar. Nunca.

            Belladonna pede a Hermínia que segure Judá.

            - O que foi? – indagou ela, assustada.

            - Minha garganta dói, não consigo respirar direito. Estou fraca desde que... Desde que Judá veio ao mundo. Eu vou ficar aqui e esperar que acabe.

            - Mas estamos todo mundo envenenado. – chorou Hermínia.

            - Todo mundo menos você, como tanta coisa nessa vida de meu Deus, - riu Frida entre lágrimas. Deu um beijo em Hermínia e lhe entregou os mantimentos que tinha.

            Um tanque atirou um missil bem na frente de onde estavam, causando um grande estrondo e abalando as estruturas de onde estavam, levantando uma espessa nuvem de poeira. Sarah beijou o bebê e sorriu para Hermínia.

            - Diga ao meu filho – e parou por um instante. – Diga a ele, que Judá morreu lutando. – E derramou lágrimas que pareciam queimar seu rosto. – Mas quando crescer, diga-lhe a verdade.

            Hermínia olha para elas desolada, mas vira-se de costas e sem olhar para trás, parte sem dizer adeus. Um relâmpado cai ali próximo e começa uma chuva muito forte. Ela olha para o bebê, pequenino. O bebê ri para ela.

- É... – ela sorri para o bebê em seus braços. – Vamos?

Hermínia cobre a sua cabeça com o capus. Começa a andar tranquilamente entre os canhões, tanques e soldados. Sem qualquer medo, sem qualquer pressa.

Lá atrás, Frida e Sarah a observam andar no meio da guerra sem qualquer intimidação. Elas saem no meio do confronto para sentir a chuva no rosto e corpo. A batalha parecia ter sido interrompida.

            Ao redor de Hermínia forma-se uma espécie de arco-íris. Os soldados começam a se ajoelhar enquanto ela passa. Ela olha para eles e sorri. Acena com a cabeça, cumprimentando, e caminha seguindo sempre em frente sem jamais olhar para trás. No céu, nuvens de chuva redondas como em seu sonho iluminadas pela luz dourada do sol lavavam a cidade e a todas as pessoas.

A guerra acabou.

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