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Professora de Costura
Letícia estava diante de um espelho. Nua. Percebia-se observada pelo reflexo no espelho, como se a imagem reproduzida não a reconhecesse como o original de si mesma. Ela estendeu sua mão para tocar no espelho com a ponta dos dedos e, subitamente, seus dedos e os dedos do reflexo se cruzaram e as duas seguraram as mãos. Ela acordou sem entender nada.
Estava ainda sentada numa cadeira de plástico, num quarto cheio de macas, luzes frias acesas, pessoas dormindo, outras gemendo, e enfermeiros que trocavam pessoas na frente de todo mundo.
“Deus sabe o que faz”, dizia sua mãe. Mas será que mamãe merecia passar por isto? Ser trocada na frente de todos se Letícia não estivesse ali para reclamar? Letícia orava, angustiada, porque sua mãe era seu último familiar vivo, parecia não se importar que sua doença era terminal e jamais dissera qualquer coisa sobre seu pai e a família dele. Letícia tinha apenas 16 anos.
A garota levantou da cadeira e se alongou. Olhou um pouco para sua mãe, adormecida.
Parecia tranquila. Pegou sua bolsa e saiu pelos corredores. Caminhou pelos jardins e sentou em um banco. Da bolsa, tirou uma bíblia de capa de couro cor de rosa. Ela ganhara da sua avó, três anos antes. O marca página era um bilhetinho de sua avó.
“Nunca pense que já conhece a Deus o suficiente. Espero que goste do presente. Vó Aureliana”.
Dona Aureliana era uma pessoa tão doce. Alguém que lhe fazia mal, ela respondia com um sorriso tímido de quem sequer percebia a maldade. Letícia nunca entendeu se de fato sua avó realmente era tão inocente a ponto de não perceber maldades, ou se as percebia, mas não dava importância. Quando Aureliana morreu, dois anos antes, tanta gente sentiu.
Toda aquela fragilidade que parecia vir dela nada mais era do que sua pureza de espirito, e ela era, Letícia não tinha qualquer dúvida, um presente de Deus.
- Letícia, não é? – dissera uma voz estranha. – Você também mora na Brasilândia! Conheço sua mãe. É a Doraci!
Letícia olhou e teve que se esforçar para conter o choque. Era Baby. Baby morava na rua atrás da dela. Tinha trinta e poucos, usava um decote ousado que desconfortavelmente fazia Letícia querer prestar atenção nos seios enormes e na pele esticada pelas próteses. Tinha o tal “gogó”, e uma voz que transitava em algum lugar entre macho e fêmea. Era uma mulher de cara grande, com um pouco de barriga escapando na camiseta apertada. Um cabelo comprido seco, amarrado num rabo de cavalo, batom vermelho, unhas vermelhas e gestos femininos mais amplos do que qualquer coisa que ela já tenha visto uma mulher fazer.
Para Letícia, seria mais mulher do que qualquer mulher, não fosse o fato de ser um homem. Era algo, não alguém. Ser cristã a obrigava a dar respeito a esta pessoa, mas a estranheza de sua natureza a fazia querer sair correndo.
- Sou Letícia. Baby, você, né?
- Isso, linda. Olha, quer um pouco de café? Só tinha nesse lugar caro e veio muito. Comprei pão de queijo também.
- Não, obrigado.
- Sua mãe. Tá melhorando?
- Tá. Tá sim. – mentiu Letícia, num tom desinteressado, transitando os olhos entre a cara de Baby e sua bíblia. Então todo mundo sabia da doença da mãe dela? Um problema que parecia somente das duas. Isso a irritava. Essa vulnerabilidade. Todo mundo sabe o que se passa ali, no entanto, só as duas ali, tentando conviver com o problema.
- Ah, que bom. Alguém com uma boa notícia. Minha mãezinha não vai melhorar. Vão abrir minha mãe amanhã e talvez ela nem acorde mais.
Havia uma dor na voz e no olhar de Baby. Letícia sentiu um pouco de pena, mas continuava com aquela sensação de desconforto, medo.
- Deus sabe o que faz... – continuou Baby. – Eu acho uma pena que meu irmão não consiga vir se despedir. É isso que dói mais, sabe? Minha mãe deu o melhor. Nesse momento estou só eu, e eu nem posso ajudar em nada...
Letícia achou estranho ver a travesti falando de Deus. Logo ela, que vivia em pecado, que se prostituía, deitava-se com homens e ainda agia como se fosse mulher sendo um homem. Sentia um pouco de indignação, porque parecia ignorância da parte dela falar de Deus. Parecia atrevimento. No entanto, havia dor, e era mais alguém como ela, pedindo pela vida de sua mãe. Ela estava com pena da travesti. Mas não queria encostar no braço dela, nem em nenhuma parte, mesmo estando ela ali, ao seu lado. Sem entender como se sentia, sem pensar muito, disse “Desculpe”, se levantou sem olhar para Baby e voltou ao quarto. Sua mãe estava acordada.
Baby olhou a menina sair, desapontada. Não era a primeira vez que alguém demonstrava incômodo com a companhia dela. Comeu seu pão de queijo e ficou olhando para as nuvens, como se esperasse alguma voz vinda dos céus, algum sinal de qualquer coisa, ou apenas que o tempo passasse logo.
Quando Letícia voltou para o quarto, sua mãe já estava sentada e um enfermeiro trazia o almoço.
- Que cara é essa, filha? – perguntou Doraci a filha.
- Aquele traveco da rua de trás tá aqui. A mãe dele tá morrendo também.
Doraci ficou muda e olhando séria para a filha. Seu coração acelerou, e isso lhe causou dor. Tomou um gole d’água.
- Dona Aninha tá morrendo? – perguntou Doraci.
- Isso. Sei lá o que tem. Parece que amanhã ela vai fazer uma cirurgia e o risco de morte deve ser alto.
Doraci novamente ficou em silêncio.
- Meu Deus... – murmurou Doraci, cobrindo o rosto. – E o Flávio?
- Quem é Flávio? – perguntou a garota, sem esconder que queria mudar de assunto.
- Flávio? É... O irmão da Baby.
- Sei lá. Ele disse que não pode vir.
- Ele quem?
- O traveco. Ele disse que o irmão não pode vir. Que diferença faz?
A mulher empurrou delicadamente o almoço e tentou deitar-se novamente.
- Mãe, você precisa comer.
- Filha, eu vou morrer de qualquer jeito. Me deixa quieta.
- “O choro pode persistir à noite, mas de manhã irrompe a alegria”.
- “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”. Não quero comer. Tente saber mais de dona Aninha.
- Porque? Não quero ser vista com um traveco.
Doraci demonstrou um constrangimento que não pôde disfarçar.
- Quando o Geraldo tinha a sua idade, ele decidiu tomar hormônio. Virou a Baby. Dona Aninha e o Flávio eram da nossa igreja. O Geraldo também. Geraldo foi banido, e dona Aninha implorava que a gente o aceitasse de volta. Mas o pastor só queria se ele parasse com esse tratamento e arrumasse uma namorada. Ele não quis. O pastor escorraçou dona Aninha e a baniu também. Foi humilhante. O pastor chegou a empurrar dona Aninha no chão. Todos pensaram que o pastor estava errado, meio que a igreja quase ficou do lado dela, mas Flávio, com raiva, quase matou o pastor no mesmo dia. Ai todo mundo ficou com pena do pastor, no final das contas. E ele foi preso.
- Quer dizer que o traveco estragou a vida da família inteira? – debochou Letícia.
- Foi assim que eu pensei na época. Por isso sempre odiei travestis. Porque na minha cabeça, o pai da minha filha foi pra cadeia por causa de uma.- disse ela, sem escolher palavras, como quem pensa alto.
Letícia não ouviu o que ouviu. Ela ficou muda. Não tinha expressão de choque, raiva, tristeza ou felicidade. Ela não tinha entendido.
- A Baby... “A” Baby, filha. “A”, não “o”. Eu quero pedir perdão pra ela. E pra mãe dela, e para o irmão dela, porque eu não fiquei do lado deles.
Letícia levantou. Seu olhar era impassível, seu coração estava acelerado, sua pele arrepiada, suas mãos, suas pernas, tremendo. Em algum lugar no fundo de sua imaginação ela tinha algum pai maravilhoso, feliz, homem de fé, rico, bem humorado e bonito com quem poderia algum dia ser feliz. Noutro lugar de sua imaginação, seu pai era simplesmente uma figura inexistente de um passado obscuro de que sua mãe, redimida, agora religiosa, correta e ética desejava esquecer. Seu pai estava preso por reagir a pessoas que pensavam como ela pensava. Ela olhou para sua bolsa, aberta. Ali ela viu o dorso de sua bíblia cor-de-rosa.
O que Deus pensa de Baby, afinal? Teria a oração de Baby por sua mãe o mesmo peso que a oração de Letícia pela sua?
Letícia poderia ter agora uma família. Mas desejaria fazer parte desta? Um acúmulo de raciocínios, pensamentos e deduções na cabeça da adolescente a impediam sequer, de racionalizar sobre o que poderia pensar, fazer ou dizer. Era um fluxo contínuo e interminável de informações soltas, baús abertos, papeis que voavam e caiam fora de ordem. Ela saiu.
Olhar Letícia partir da sala de enfermagem fez Doraci sofrer. Ela não deveria ter dito isto agora. Não deveria ter vomitado uma informação assim aqui. Agora, desperdiçado 16 anos de oportunidades pra dizer. Ela não deveria ter feito muita coisa.
Ela criou Letícia para odiar a única pessoa que ela poderia ter hoje a seu lado. Transformou uma implicância e ressentimento em dogma na cabeça da filha e sabia que Letícia agora teria que quebrar isso, sem nunca ter sido preparada para esse tipo de tabus ou paradigmas. Ela ia morrer se sentindo culpada.
Letícia saiu e viu que Baby continuava ali, sentada. Ficou observando aquela pessoa. Como ela teria se sentido ao ser banida da igreja? Letícia gostava da igreja. Era um lugar onde ela falava das coisas que sentia e que o resto do mundo parecia não dar importância.
E se ela fizesse uma escolha, qualquer que fosse, e fosse banida?
Seria triste.
Ela não imagina um mundo onde ela não possa se ajoelhar dentro de um templo para conversar com Deus, ainda que o fizesse a qualquer hora em qualquer lugar. Sua relação com a igreja era aquele senso de abrir mão de qualquer coisa para a hora “Dele”. Porque nas horas dela ele estava ali.
“Mas é pecado ser assim”, pensou ela, olhando Baby sentada no banco de praça com os braços abertos contemplando o céu.
E quem é Flávio? Que abriu mão da igreja pelo irmão. Bateu no pastor pela mãe. Ela teria atacado feito uma fera quem quer que desrespeitasse sua mãe ou avó. Mas quase matar? Talvez fosse um acúmulo de frustrações. Imaginar a vida que Baby teria pela frente, como seria vista e tratada.
E porque Baby escolheu ser assim? Não podia simplesmente ser um homem deitando com outros homens? Não podia dormir com homens em segredo, sem dizer nada a ninguém e não arruinar a vida de sua família? Precisava mudar, virar mulher? Expor a si mesmo, a família a toda esta rejeição? Qual o sentido de escolher isso?
Letícia não entendia. Pegou a bíblia e leu o bilhete de sua avó. “Nunca pense que conhece a Deus o suficiente”
Teria ela que evangelizar Baby? Que argumentos faltavam ser dados que sua mãe, irmão, o pastor, e outros familiares já não poderiam ter dado na tentativa de recuperá-la desta transformação?
Baby se mexeu e pareceu recolher sua bolsa para voltar para dentro. Letícia se escondeu e foi até o banheiro. Sentou em um vaso com a tampa fechada, apoiou o rosto sobre as duas mãos, e quis chorar, mas parecia não ter lágrimas dentro dela. Ela queria dar aquele soluço que, feito uma barragem de rio derrubada, permitindo que uma onda poderosa de água escorresse lavando tudo por onde passa. Mas parecia que ela tinha que ser racional.
E se, quem sabe, ela própria tivesse que entende-la, como Flávio e Aninha entenderam, como sua mãe, no leito de morte parecia disposta a compreender?
Ela saiu do toalete, lavou as mãos, o rosto. Enxugou-se, e ao se aproximar da porta, Baby a abria. Baby fez um aceno constrangido, como se soubesse que não era bem vinda. Letícia retribuiu com igual desconforto e constrangimento e saiu do banheiro. Ficou parada em pé atrás da porta, sem saber o que fazer, como reagir, e abriu a porta novamente. Baby estava chorando, soluçava. Ao ver que a moça estava de volta tentou engolir e disfarçar o choro.
- Minha mãe queria ver você... – disse Letícia, olhando mais para o chão e para os lados, que para os olhos de Baby.
- Claro.
Enquanto uma enfermeira colhia sangue de Doraci, Letícia chegou com Baby, sem que trocassem quaisquer palavras. Doraci claramente sentia vergonha diante de Baby, que parecia não sentir nada. Letícia percebeu que a mãe sentia vergonha, mas não da travesti, mas de si mesma.
- Oi... – disse Baby. – Tua filha... ela disse... Que bom que você está ficando boa...
Doraci olhou para a filha e sorriu.
- De alguma maneira, isto é verdade. – respirou fundo. A enfermeira fez-lhe um curativo rápido. – Mas estou morrendo. Devo ter alguns dias, por ai. E dona Aninha?
Baby olhou para os pés, tentando procurar alguma coisa. Talvez uma maneira leve de dizer algo que não quer ficar revelar com palavras.
- Minha mãe está em coma. Não acho que vá acordar.
- Quando foi a última vez que ela viu seu irmão?
Baby segurou o choro. Este parecia ser um ponto fraco, de fato.
- Fomos visita-lo, há um ano e meio. Eu o visitei depois disso, mas mamãe não podia viajar, né? É longe.
- Teu irmão terminou comigo porque eu “mandei” ele colocar você pra fora. Eu queria que me desculpasse, porque eu realmente não te entendia. Não que te entenda hoje, mas...
- Tudo bem. – disse Baby. Letícia olhava de uma para a outra. Parecia buscar ler as menores reações físicas, em busca de reviver o passado de algum modo.
- E deveria pedir desculpas ao Flávio por pedir que ele desrespeitasse seu irmão – sua irmã – e, tua mãe. Acho que logo vou dar um jeito de me desculpar com ela. Preciso pedir desculpas pra minha filha, porque eu deixei que pensasse que eu era sua única família.
Letícia sentia vontade de chorar. Tentava conter, era o esforço de uma vida. Porque ela escondia isto se queria tanto chorar? Sentia vergonha de estar triste, ou confusa.
- Ela é filha do Flávio? – murmurou Baby, perplexa – minha mãe ficaria tão feliz de saber que tem uma neta...
- Eu sei, por isso que eu devo um pedido de desculpas a ela.
- Você vai ficar boa, Dora... – murmurou Baby, pegando na mão de Doraci, que sorriu com uma tranquilidade que Letícia só via em sua avó Aureliana. As mãos da travesti tocando as de sua mãe. Isso lhe causava algum senso de repugnância que ela não entendia. Também isto ela precisava entender.
- Câncer no ovário. – respirou prolongadamente, tentando conter a tristeza de seu olhar
- Meus órgãos não estão funcionando direito. Não tem mais jeito. Nem precisa ter, Baby. Eu tô bem. Quando que o Flávio sai?
- Acho que em quatro anos. Seria mais, mas ele se comporta bem. Ele foi impulsivo, só isso. Essa coisa que a gente tem com relação a mexerem com nossas mães.
As duas riram.
- Nem me fale. – e olhou para sua filha. – Letícia, filha, pode esperar lá fora?
A garota saiu sem dizer nada. Baby sentou-se ao lado da cama.
- Eu odiei você a cada dia. E odiei a todas as outras iguais a você. Sabe o que acontece? Hoje eu tenho uma filha, que é o que mais amo no mundo, e sua mãe ta morrendo. Seu irmão ta preso. Minha família, nem sei de onde é. Logo você, justamente a última família que resta pra minha filha. E eu a eduquei pra pensar como eu pensava. – e ela tocou o rosto de Baby. - Tenta não trabalhar na rua. É perigoso. Eu não quero que você morra.
Baby derramou uma lágrima.
- Me perdoe, por eu pedir por sua vida pensando na da minha filha. – e Baby riu. – tudo poderia ter sido diferente.
- Eu sei que sou a última pessoa do mundo que você desejaria para sua filha.
- Eu criei minha filha sozinha, criticando o pai ausente, mas eu própria tinha espantado o pai dela, e o pai nunca soube dela...
- Minha mãe desconfiava, sabia? Mas nunca disse nada a ele, porque não tinha certeza. E porque tinha medo de você.
Doraci respirou fundo, e apertou a mão de Baby.
- Sai da rua, Baby, sai da rua. Minha filha é chata, mas é uma boa menina, e é a família que eu tenho pra dar pra você. Dá um tempo pra ela. Não volte a me ver, nem a procure. Ela vai te procurar.
Baby sorriu, acariciou os cabelos de Doraci e beijou sua testa.
- Eu sou professora de costura, Dora, não sou prostituta.
Dora apertou sua mão. “Desculpe”.
Um dia se passou. Letícia não viu mais Baby.
Em casa, enquanto colocava roupas na máquina, varria a casa, continuava com sua cabeça confusa. Entre versículos da bíblia, e sentimentos de seu coração, tentava decifrar que passos dar, que sentimentos permitir-se sentir. Ela queria saber sobre Flávio, mas ela e sua mãe nunca mais tocaram no assunto desde aquele dia.
Ela tinha, afinal uma família. Tinha ainda uma avó, um pai em algum lugar, e uma tia. Sim, Leticia começava a enxergar a Baby como uma figura feminina de fato. Seu peito continuava sufocado, sem saber o que sentir ou pensar. Mas a cada minuto, parecia que dentro de sua cabeça, as pilhas de folhas soltar passavam a ser numeradas e, minuto a minuto, ela organizava.
Dona Aninha. Ela se lembra de dona Aninha. Era uma senhora branquinha, de carinha rosa. Bem gordinha. Costumava lhe acenar a mão como se soubesse quem era a garota, ou como se ela tivesse alguma importância em sua vida.
Letícia apoiou a vassoura em uma parede e decidiu ir a rua atrás de notícias de dona Aninha. Uma vizinha disse resumidamente e sem parecer se importar “dona Aninha morreu, vão enterrar acho que às 15 horas”.
Sem pensar muito, Letícia se trocou e foi até o cemitério, que não era longe. Lá, em uma salinha quase vazia, havia meia dúzia de pessoas, entre elas, Baby, que estava vestida de maneira discreta, sentada em um canto. Baby olhou para Letícia e levou as mãos para o coração. Sorriu. Pela primeira vez Letícia achou Baby bonita. Baby lhe sorriu de volta e se aproximou do caixão.
Ali estava sua outra avó. Uma pessoa boa. Ela olhava para a ternura daquela expressão delicada. A vida que não foi vivida. Ela percebeu que seu rosto tremia. Dona Aninha sempre soube. Ah, dona Aninha. Era tão bonita. A respiração de Letícia ficou ofegante, e ela chorou, muito discretamente. Agradeceu pelo carinho que recebeu nos singelos olhares e sorrisos em filas de supermercado. Nos acenos quando a via na rua.
“Ah, minha vó”.
Dona Aninha sempre soube...
De repente, Letícia sabia que sempre teve outra avó por perto, naquele sorriso descompromissado de uma velhinha bonitinha que parecia ter seus próprios problemas.
Que pena, pensou Letícia, que ela nunca ouviu a risada desta mulher, nem suas histórias.
Ela olhou para Baby, que se levantou e ficou ao seu lado, e sorriu, em meio a sua tristeza, derramando uma lágrima a cada piscada.
Letícia sentia que precisava matar aquele nojo que sentia. Ainda sentindo aquela repugnância, ela abraçou Baby, e as duas, com um soluço doloroso, choraram. Foi o abraço mais apertado do que qualquer um que ela tivesse recebido em anos. Afinal ela, Baby, era só uma pessoa.
Ela esperou enterrar sua avó para voltar ao hospital. A morte desta avó doeu mais do que quando perdera a outra. Da outra ela tinha lembranças, desta ela trazia apenas acenos e sorrisos há distância e ideias de uma vida não vivida.

Letícia e sua mãe permaneceram de mãos dadas olhando nos olhos uma da outra em silêncio por vinte minutos, vinte minutos que se passaram em segundos, ou no tempo de toda uma vida. Ela adormeceu lentamente. Letícia acariciou os cabelos de sua mãe, seu rosto, deu um beijo em sua testa. Doraci nunca mais acordou.
Dois dias haviam se passado desde o enterro de sua mãe. Letícia foi à padaria. Comprou dois pães, dois sonhos pequenos e foi até a casa de Baby. Respirava calmamente com o coração batendo fora de compasso. Uma nova fase da sua vida acabava de começar.
Baby preparou um café enquanto Letícia via fotos de sua avó, de Baby, de Geraldo e de Flávio pela sala.
- Ele sempre bateu nos meninos que mexiam comigo na escola. – disse Baby, orgulhosa. Letícia sorriu e colocou seu braço sobre os ombros de Baby.
- Como ele e minha mãe se conheceram?
Baby deu a volta com o braço na cintura de Letícia.
- Essa é uma longa história! – disse ela e as duas riram. – Você toma café puro ou com leite?
E voltaram para a cozinha.
“Vovó tinha mesmo razão”, pensou Letícia, “a gente realmente não conhece Deus o suficiente para entendê-lo”.
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